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domingo, 3 de agosto de 2014

A noiva pintada

Foi assim que tudo começou. Ele pintou a minha cabeça em primeiro lugar, e foi por isso que logo comecei a pensar, mesmo sem ver e nem ouvir nada. No começo só conseguia sentir as pinceladas, muito suaves, muito agradáveis. A umidade da tinta era refrescante, e a textura cremosa dava às cerdas do pincel um ritmo seguro, macio. Fui surgindo lentamente e tenho certeza de que nem mesmo ele, meu criador, suspeitava da curiosidade que ia crescendo naquela cabeça ainda sem olhos, sem boca e sem nariz.

Demorou muito para pintar os cabelos. Quantos matizes, quantos brilhos terá ele colocado nas curvas dos cabelos? Devem ter sido muitos, porque não acabava nunca! Que criatura minuciosa, pensava eu! Que paciência, que empenho! Já tinha certeza, desde então, de que toda aquela demora não significava indecisão. Ao contrário, ele sabia o que buscava.

Estranhamente, pintou o nariz em seguida. Por que não os olhos? O natural seria pintar os olhos antes do nariz, achava eu. Mas preferiu o nariz. E comecei a sentir os odores do lugar. Naturalmente, um forte cheiro de tinta, que não me desagradou. Como poderia me desagradar, se era a substância da minha própria existência? Junto com o cheiro de tinta veio o do pintor. Suor, cabelos, respiração. Não me desagradou. Como poderia me desagradar se vinha do meu criador? Agora já conhecia o seu toque e o seu odor. Faltava vê-lo e ouví-lo.

Foi pintando o pescoço, o colo, os braços. O tecido da roupa ele fez muito leve, quase não o sinto. Será de renda? Será transparente?

A boca. Demorou muito na boca. Usou pincéis pequenos, alguns finíssimos, alguns espessos. Delineou o contorno com firmeza, e foi preenchendo o espaço com movimentos lentos, sinuosos, de baixo pra cima, de cima pra baixo, o lábio superior, o lábio inferior, os cantinhos... Deve ter ficado bonito. Tenho até a impressão de que ficou proeminente. Proeminente e macio, talvez cintilante como se estivesse molhado.

Mas os olhos? Estava tão ansiosa por vê-lo! Sabia que precisava ter paciência porque ele não demonstrava pressa nenhuma de me terminar. Quanto tempo ficou desenhando os detalhes do vestido? Uma eternidade.

Às vezes parava de trabalhar, e me vinha o medo de que tivesse desistido. O cheiro de tinta diminuía e o dele desaparecia completamente. Só voltavam muito, muito depois. Primeiramente o dele, em geral misturado com outros odores que não lhe eram naturais. Depois começava o de tinta, e à medida que as carícias do pincel se reiniciavam e se prolongavam, o cheiro do pintor se tornava mais forte, mais característico. Todos os outros iam se extinguindo, e ficavam outra vez os dois únicos de que eu gostava: o das tintas e o do pintor. Que bom! Que reconfortante! Desejava que ele nunca parasse de me pintar, que nunca me terminasse.

Mal acreditei quando começou a pintar os olhos, naquele ritmo lento e minucioso. O esquerdo primeiro. Desenhou os cílios um a um, com um pincel finíssimo. Perdi a noção do tempo. Quando começou o direito eu fiquei apavorada, porque não estava enxergando nada com o esquerdo! Ele havia pintado um olho cego! De que adiantava tanta minúcia e arte, se no fim estava condenada a não vê-lo jamais? Ah, que dor senti! Se tivesse lágrimas, teria chorado.

Ele continuava o trabalho no olho direito, mas agora eu já não estava impaciente. Sabia que nunca iria vê-lo. Queria poder imaginá-lo, mas nem isso era possível porque nunca tinha visto ninguém. Lamentei que tivesse caprichado tanto na cabeça, porque os meus pensamentos eram perfeitos e eu sabia que ao terminar o olho direito o trabalho estaria completo, e ele se afastaria para sempre.

Foi tão rápido desta vez! O pincel foi retirado da superfície, os odores se diluíram, e eu soube que estava tudo terminado.

Muito, muito tempo depois, quando a minha tinta já estava totalmente enxuta e eu quase conseguira parar de pensar, comecei a sentir de novo o aroma do meu criador. Vinha bastante atenuado, misturado com um perfume muito agradável. Senti que se aproximava, e dali a pouco aquele familiar cheiro de tinta veio vindo, veio vindo, e de repente um pingo refrescante foi depositado bem no centro de uma das íris. E eu enxerguei! Não deu tempo de olhar nada porque logo depois outro pingo caiu no centro da outra íris. Agora eu via tudo com perfeição!

Meu criador se afastou caminhando de costas, sabendo que agora eu o via, querendo que eu o visse também. E olhava para mim, e sorria, e parecia maravilhado, e acho que estava emocionado.

Como é belo o meu criador. Nunca vi nenhuma outra pessoa, mas tenho certeza de que ele é a mais bela de todas as criaturas. Não se esqueceu de mim, como eu tinha receado. Às vezes ele sai, mas sempre volta. Senta-se à minha frente e fica me olhando e sorrindo com os olhos brilhantes de lágrimas. Acho que me ama tanto quanto eu o amo.

Outro dia me beijou. Foi maravilhoso. Muito, muito mais agradável do que a mais suave das pinceladas.


Imagem: http://paintingwedding.com

4 comentários:

de Dai para Isie disse...

Lindo demais, Zu. Adorei! Parabéns! :) <3

Beijos,

Isis Fernandes

Zulmira Carvalheiro disse...

Obrigada, Isie! Muito gentil :)

Unknown disse...

Precisou de muita sensibilidade pra escrever esse conto, parabéns.

Zulmira Carvalheiro disse...

Obrigada, Diego. Feliz em saber que você gostou. Um abraço.