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"OS MENINOS DA RUA BETO"

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sexta-feira, 31 de julho de 2015

Um aluno famoso

Genoveva trabalhou muitos anos como professora. Desde a aposentadoria retomou um hábito da juventude: ler, todas as manhãs, o jornal impresso.
Uma das suas lembranças mais felizes: o pai, depois do café da manhã, ainda sentado à mesa lendo o jornal. E a pequena Genoveva na ponta dos pés querendo ver que coisas bonitas eram aquelas, pra merecer tanta atenção do pai.
Depois de aprender a ler, ela também ficava à mesa e recebia algumas páginas para se distrair. E como se sentia importante! Eu também leio jornal, pensava com orgulho.
O pai morreu e ela continuou com o hábito; não deixava de ser uma forma de homenageá-lo. Mas chegaram as obrigações da vida e a rotina teve que mudar.
Agora finalmente o tempo voltou a ser seu. Todas as manhãs, depois do café, lá está ela com as folhas espalhadas sobre a mesa da sala. Vai lendo calmamente, dando muita atenção às notícias de política, nenhuma atenção às notícias policiais, deixando para o fim os quadrinhos, as resenhas literárias e as críticas cinematográficas. Horóscopo? Fofocas? Colunas sociais? Não prestam pra nada.
Naquele dia ela encontrou uma reportagem que a interessou muito. Falava sobre um ex-aluno seu. Estava famoso o rapaz! Continuava bonito como era aos dezessete anos. Rosto bem desenhado, olhos muito azuis, cabelos claros.
Genoveva parou de ler e ficou recordando. Muitos anos de trabalho, centenas e centenas de alunos. Da maioria não se lembrava de nada, nem nomes nem feições. Porém alguns são inesquecíveis, por motivos bons ou por motivos ruins.
Esse aluno em particular era péssimo. Fazia parte de uma turminha completamente desinteressada, sequer os cadernos eram abertos. Algumas vezes faziam uma roda com as carteiras para facilitar o bate-papo. Genoveva lembra-se desse jovem, agora famoso, virado de costas para o quadro enquanto a aula era dada.
Certo dia o absurdo ultrapassou todos os limites e ela, normalmente compassiva e gentil, precisou gritar pedindo silêncio. O jovem virou e disse: “Dona Genô, eu vou fazer silêncio, mas só se a senhora me der um beijinho.”
Genoveva ficou absolutamente escandalizada. Senhora de respeito, nunca havia dado abertura para tal tipo de conversa. Desde jovem sempre usou jaleco branco de mangas compridas, nenhum tipo de joia chamativa nem maquiagem pesada. Sua convicção era de que o professor não deve chamar atenção para a sua figura, mas sim para a matéria que leciona. Seu linguajar era formal, só usava a norma culta. Tudo para manter uma distância saudável entre ela e os estudantes. Sem isso, acreditava que os papéis se misturavam, a disciplina se esfarelava, e o aprendizado deteriorava.
Os tempos haviam mudado, ela admitia, mas na medida do possível procurava preservar os antigos valores. Até entendia a inutilidade de exigir daqueles jovens a mesma atitude que exigira de outros, apenas meia década atrás.
Ia levando as coisas do jeito que conseguia. Ficando nervosa, desgastando-se, a pressão arterial subindo, mas sempre mantendo a postura de professora séria e competente. Exigente sim, mas compreensiva, sem jamais perder a linha.
Perder a linha! Como estava difícil nos últimos tempos não perder a linha. Cada ano que passava, mais e mais difícil.
E naquele dia específico a coisa chegou ao fundo do poço. Ao ouvir a frase insolente, ela engasgou, sentiu o rosto ficar vermelho e os olhos se encherem de água. A única coisa que conseguiu dizer foi: “Isso não vai ficar em brancas nuvens.”
Não foram as palavras, mas sim a expressão no seu rosto que deve ter alarmado o jovem. Ele permaneceu quieto pelo restante da aula e foi embora como se nada houvesse acontecido. Genoveva saiu de lá diretamente para a sala da orientadora pedagógica.
Consta que o estudante foi advertido verbalmente, nada mais do que isso. Pelo restante do ano, que por sorte chegava ao fim, ele retomou o seu comportamento debochado. Não voltou a se expressar daquela maneira, mas o rendimento continuou nulo.
Último dia letivo, última avaliação, últimos alunos despedindo-se e saindo. Ele foi ficando. Sala vazia, apenas ele e um colega. Aproximaram-se juntos da mesa para entregar as provas. Ele perguntou se podiam conversar. Claro que sim. Pediu ao colega que esperasse lá fora. Então começou a representação.
“Que cena, meu Deus!” Até hoje Genoveva lembra claramente.
O rapaz, com um ar muito consternado, os olhos azuis brilhando (lágrimas contidas?) pediu desculpas pelo procedimento tão reprovável.
“Não foi por mal, dona Genô. É que a senhora é uma pessoa muito carismática. Eu lhe tenho em grande consideração. O que me atrapalha é esse meu problema de hiperatividade.”
(Falta de vergonha mudou de nome, pensou Genoveva.)
“Ah, você tem hiperatividade? Eu nem tinha percebido.”
“Tenho sim, é que tomo remédio. Mas às vezes fico sem tomar por causa dos efeitos colaterais, então as coisas fogem do controle.”
Genoveva ouvia tudo aquilo com frieza. O jovem deve ter percebido, porque fez uma expressão muito triste e começou a chorar. Com lágrimas.
(Que ator! pensou ela. Ator ou sociopata. Como desempenha bem o papel!)
“É verdade, professora. O remédio me faz ficar calmo, mas em compensação me dá sono, eu não consigo acompanhar a aula, é horrível. Então de vez em quando fico sem tomar, mesmo sabendo que vou tumultuar um pouco o ambiente. Não sei mais o que fazer.”
“Deve ser muito chato mesmo.” respondeu ela com a mesma frieza. Ele viu que precisava aumentar a dose. Esfregou os olhos, que ficaram vermelhos, e a encarou chorosamente.
“Pra piorar, professora, o meu pai bebe.”
Genoveva só olhava. “Que problemão, hein?”
“A senhora nem imagina. Eu vou na igreja, tento rezar, mas a hiperatividade me atrapalha. Não consigo me concentrar nem quando estou rezando.”
“Uma pena mesmo.” (O que esse garoto quer de mim, afinal?)
“Olha, professora, eu peço para a senhora ser paciente comigo. Sei que errei, mas não foi por mal. Também sei que as minhas notas não são boas, mas veja que se nem pra rezar eu me concentro, quanto mais pra estudar a sua matéria. Eu peço a sua compreensão.”
“Vou ver o que posso fazer.”
“Eu lhe agradeço. Posso dar um abraço?”
“Pode.” (Deixe estar, maganão, que a sua batata está assando.)
Abraço comovido. Mais desculpas. O colega lá fora no corredor, esperando. Genoveva não ouviu nada, mas tem certeza de que ao sair o jovem disse ao colega algo como “Tudo certo, passei a conversa na velhota.”
Final de ano, conselho de classe. Quem ficou reprovado em até três disciplinas não é retido, mas tem que prestar novas provas. Só repete de ano quem ficou em quatro ou mais. O tal aluno foi reprovado em quatro. Mas está no último ano...
“Gente, vamos mesmo reter esse menino? Será que alguém aí não pode alterar a nota dele? É uma pena se ele repetir. Não se forma, fica ocupando uma vaga, e a gente vai ter que aguentar a criatura por mais um ano. Será que não dá pra ajeitar as coisas?”
Genoveva mal pôde acreditar. Abriu a boca para falar mas não conseguiu porque a indignação travou as palavras. Nisso, a professora de matemática resolveu colaborar. Pois é, ele só precisava de mais um ponto e meio. O que é um ponto e meio, no final das contas?
O professor de português também achou que o caso não era tão grave assim. Que custava dar os dois pontos que ele estava devendo?
O sangue de Genoveva subindo. Conseguiu falar.
“Vamos mudar as regras assim, sem mais nem menos? Vocês acham que os outros estudantes não vão perceber que a aprovação foi arranjada? Como vamos ter autoridade sobre as próximas classes se eles souberem que em tudo se pode dar um jeitinho?”
Não adiantou protestar. Logo em seguida o professor de física também decidiu ser bonzinho, e só restou ela, a chata de química, insistindo no seu ponto de vista.
“Pelo menos vai constar no histórico escolar dele a reprovação em química?”
“Não, professora. Isso seria considerado constrangimento.”
Foi assim que aquele jovem insolente, irresponsável e manipulador formou-se no ensino médio. Agora, vários anos depois, lá estava ele na primeira página do jornal. Bonito como sempre e agora famoso, muito famoso.
A sobrinha de Genoveva passa pela sala e vê a tia compenetrada sobre as folhas do jornal.
“O que foi, tia? O que tem de bom aí, que a senhora está tão interessada?”
“Nada não, filha. É só mais um político corrupto e sem-vergonha que acaba de ser preso.”
Genoveva, lá no seu íntimo, sentiu um pouquinho de culpa — só um pouquinho — pelo prazer que experimentou ao dizer tais palavras.
Imagem: http://imgadvisor.com

terça-feira, 28 de julho de 2015

Maçã verde

Que delícia. Domingo, manhã de chuva. Friozinho gostoso. Adoro.
Nem precisava ter levantado tão cedo. Mas eu gosto de acordar, abrir os olhos e ver que estou aqui, no meu apartamento.
Tá bom, é quitinete, mas eu considero apartamento. E nem é meu, só aluguei, mas é como se fosse.
A prova de que estou no meu apartamento, meu e de mais ninguém, é esta maçã que estou comendo. Verde, bem grande, gostosíssima, sabor de pera misturada com maçã. Vou ficar aqui comendo e olhando pela janela e vendo essa paisagem que nem é tão bonita, mas não faz mal, porque só o prazer de estar sozinha, em paz, sem dar satisfação a ninguém, já compensa.
Se eu estivesse lá na casa dos meus pais logo logo a minha mãe ia aparecer dizendo: “Letícia, comer fruta crua em jejum não é bom pro estômago, você precisa tomar café com leite e comer um pãozinho.”
Hahahahahahaha! Olha eu aqui, mãe! Tô comendo maçã e bebendo água. Tá vendo aquele copo ali no parapeito? É água pura, fresquinha. Se eu quisesse café, estaria bebendo café, mas não quero. Agora sou eu quem manda no meu estômago, valeu?
Tive que esperar dezoito anos para começar a viver. Até que enfim. Meu quartinho-com-banheiro tem tudo o que preciso: a cama, o armário, um fogãozinho de duas bocas, a mesa com cadeira, um radinho e o filtro de água.
“Ai que pobreza, Letícia!”
Pobreza nada. É tudo limpo, arejado, sem insetos, não passo frio nem calor, não preciso de geladeira, computador uso o da faculdade, televisão nunca gostei mesmo, o chuveiro é bom e o colchão macio. Pronto, perfeito.
E para ficar mais perfeito ainda, estou fazendo o curso dos meus sonhos. Jornalismo! Em universidade pública! Só de pensar nisso me dá um arrepio de felicidade. Adoro todas as matérias, principalmente História da Comunicação.
Como não sou boba nem nada, consegui duas coisas bem legais: bolsa-alimentação e emprego de meio período. Daí que não tenho problema com grana. E a coisa só tende a melhorar, porque...
Droga! Tem gente batendo na porta. Odeio quando ficam batendo na porta do banheiro.
— Letícia! Sabe há quanto tempo você está nesse banheiro?
— É que estou lavando o cabelo, mãe!
— Mas precisa demorar tanto?
— Hoje é domingo, mãe!
— É domingo mas tem mais gente precisando usar o banheiro. Já tá formando fila aqui na porta.

Ai meu Deus. Nunca consigo chegar na parte mais legal, quando a chuva acaba e eu vou passear no parque. E depois volto pro apartamento e faço aquele macarrão delicioso com molho branco e brócolis. E depois estudo um pouco e então saio com a turma da faculdade. E a gente vai ver aquele filme brasileiro que tá bombando e depois...
— Leticia! Quantas vezes vou ter que te chamar?
— Já vou, mãe. Já tô indo.

Droga de vida.

Letícia sai do banheiro. Os dois pirralhos que ela chama de irmãos estavam mesmo fazendo fila na porta, estapeando-se enquanto esperavam. Ela vai pro quarto, começa a secar os cabelos com a toalha.
— Vem logo tomar café, Letícia! Hoje você vai pra feira comigo.
— Não quero café, mãe. Não tem aí uma maçã?
— Maçã em jejum? Vai te fazer mal. Come primeiro um pãozinho.



Imagem: https://www.realbuzz.com


quarta-feira, 8 de julho de 2015

Valsa dos Noivos

Acabo de chegar do enterro da minha cunhada. Inventei uma dor de cabeça e pedi para o meu marido ir comprar um remédio. É tarde, as farmácias estão fechadas, ele vai demorar. Quero ficar um tempo aqui sozinha, escrevendo este relato. Sinto que preciso fazer isso e tem que ser agora, caso contrário não vou conseguir me despedir dela por completo. Este papel eu colocarei dentro de um envelope que nunca mais será aberto. Necessário agora é escrever, colocar pra fora, despejar em algum lugar estas lembranças e estas confissões .

Eu já estava casada há dez anos, e tudo caminhava bem. Sem filhos, porque nunca quisemos tal responsabilidade. Gostávamos da nossa vida do jeito que era, com independência e privacidade.

Foi então que a bomba estourou. Meu marido apareceu com uma novidade: sua irmã mais velha tinha que vir morar conosco. Mas como? Por quê?

Ele explicou detalhadamente. Estava coberto de razão, eu é que não queria entender. Hoje sei que era o certo a fazer. Ela havia ficado solteira a vida toda, cuidado dos pais até a morte de ambos, era idosa, não tinha a menor condição de continuar sozinha na antiga moradia, precisava estar com alguém para um caso de necessidade.

Fiquei revoltada. Vamos perder toda a privacidade, disse eu. Nunca mais sairemos, nunca mais viajaremos em paz: ou levar junto ou deixar alguém tomando conta, as duas únicas opções. Vai ser uma preocupação constante, pior do que teríamos com um filho, porque mais cedo ou mais tarde ela vai precisar de alguém para cuidar, levar ao médico, dar banho. Mais despesas também. Adeus à vida organizada, despreocupada e tranquila. Uma pessoa estranha sempre presente, exigindo atenção. O que nós fizemos para merecer isso?

Só parei de falar quando percebi que ele estava ficando chateado e triste. Era a sua única irmã e, devido à grande diferença de idade, quase a sua segunda mãe. Ela sempre soubera que tinha a missão de cuidar dos pais até o fim, mesmo que casasse. Não casou, dedicou-se integralmente a eles. Agora, após o falecimento da mãe, restava ali um bagaço de ser humano, alguém que não havia realizado nenhum sonho porque sempre pensara no bem estar dos outros e jamais no seu. Merecia ficar abandonada naquela casa deserta, onde já há muito tempo se sentia cansada de tantas obrigações e afazeres? Ou colocada em uma instituição para idosos, sem contato com os únicos laços familiares que lhe restavam?

Não, claro que não. Ao contrário, merecia um pouco de descanso e conforto. Concordei. Contrariada, mas procurando não demonstrar; querendo preservar o que possuía de mais valioso na vida: o meu casamento.

Então ela veio. Tímida, envergonhada. Hoje entendo que se sentia triste pela perspectiva de viver de favor. Como pagar por esse favor? Sendo submissa, quieta. Sorrindo quando achava que era pra sorrir, nunca pedindo nada, nunca manifestando irritação ou descontentamento.

Saíamos para trabalhar e ela ficava só. Lia, fazia tricô, regava as plantas do apartamento, ouvia rádio. Não gostava de televisão. Fez algumas tentativas de ajudar no trabalho doméstico, mas a desencorajamos. Não era necessário e podia ser perigoso devido à idade. Quando a diarista vinha para a faxina ela aproveitava e dava brilho nos espelhos, tirava algum pozinho.  Às vezes fazia um passeio a pé. Comprava frutas, um doce, um refrigerante, que trazia para casa a fim de compartilhar conosco. Não tinha aposentadoria nem pensão, só o rendimento da poupança resultante da venda da casa.

Sou uma pessoa má. Não sabia disso antigamente, mas depois da convivência com minha cunhada não há como ignorar o fato de que sou uma pessoa essencialmente má. Essa maldade provém do meu egocentrismo. Hoje eu sei, e tento me controlar. Olá. Meu nome é Alexandra. Sou uma pessoa má, e estou há quatro anos e cinco meses sem praticar nenhuma maldade.

Prova desse desvio de caráter é que eu me irritava com a presença dela no café da manhã e no jantar. Antes da sua vinda aqueles eram momentos gostosos que eu tinha com o meu marido. Conversávamos, trocávamos as impressões do dia de trabalho, fazíamos planos para o fim de semana, ríamos juntos. Mas com ela ali na nossa frente ficava difícil, porque era necessário incluí-la na conversa e não sabíamos como. Tornava-se uma coisa forçada, sem graça, artificial. Confesso que me senti aliviada quando, depois de algumas semanas, ela perguntou se podia fazer as refeições antes de nós. Estava acostumada a se levantar e deitar muito cedo, então achava melhor voltar aos antigos horários. A partir de então, ao levantarmos, o café da manhã já estava pronto na mesa. E quando chegávamos à noite ela já havia comido o seu jantar e adiantado os preparos para o nosso. Tive de reconhecer que tal arranjo era bastante satisfatório.

Vai daí, só restou um outro motivo de irritação. Era a música que ela ouvia todas as noites quando se recolhia ao quarto para dormir. Por volta das oito e meia, religiosamente, lá vinha aquela música tocada na vitrolinha velha. O volume era baixo, mas dava pra reconhecer a Valsa das Flores de Tchaicovsky. Cheguei a cronometrar: durava sete minutos e seis segundos. Todas as noites, invariavelmente. Graças aos céus ela não recolocava o long play, tocava a valsa apenas uma vez. Mas por que sempre a mesma música, no mesmo horário? Eu podia ter perguntado, mas não o fiz por receio de invadir a sua privacidade, de parecer rabugenta, de inibir essa rara fonte de prazer que ela ainda possuía.

Certa noite fazia frio, eu e o meu marido estávamos enrodilhados no sofá da sala, abraçadinhos, vendo a novela. Começou a música. Baixinha, não chegava a incomodar. Mas a irritação me fez levantar e fazer uma coisa muito feia. Disse ao meu marido que estava indo ao banheiro, mas fui olhar pelo buraco da fechadura do quarto dela. O que vi me deixou de respiração suspensa.

Ela estava vestida de noiva. Um traje antiquado, desgastado pelo tempo, horroroso. Mais parecia uma mortalha. Ela dançava lentamente ao som da Valsa das Flores, pra lá e pra cá, os braços estendidos como se houvesse alguém dançando com ela. O véu oscilava, a cauda do vestido se arrastava pelo chão. Era tétrico, era horrível.

Saí de lá lentamente, com um nó na garganta. Fui para o banheiro tentando me recompor. Quando voltei à sala o meu marido notou que eu estava diferente. Acho que estou gripando, respondi. Mais tarde, já na cama, perguntei a ele por que sua irmã nunca havia se casado. Tinha sido de propósito, para cuidar dos pais, ou apenas aconteceu?

Ele me contou uma história trágica. Ela não havia planejado ficar solteira. Era uma moça ativa, alegre, tinha um emprego, namorou e ficou noiva de um homem que trabalhava em uma oficina mecânica do bairro.  Parecia estar tudo bem, ele sabia que iam morar na casa dos pais dela mas se mostrava contente porque vivia em uma pensão, tinha vindo do norte e era sozinho, por isso achava que ter família outra vez seria uma grande felicidade. Pelo menos assim dizia.
Estava tudo pronto para o casamento. O quarto dos noivos, o vestido, o horário na igreja e o salão de festas, tudo preparado. O civil era no sábado e o religioso no domingo. Naquela tarde ela vestiu um tailleur branco, discreto e elegante, colocou um colarzinho de pérolas, um ramo de flores no cabelo, e foi com toda a família para o cartório. Esperaram bastante, mas o noivo não chegava. Telefonaram para a pensão e ficaram sabendo que ele tinha viajado na noite anterior. Viajado? Sim, respondeu a dona da pensão. Colocou tudo em uma mala, pagou a conta do mês e disse que estava voltando para o norte.
O mundo caiu para ela. O que poderia explicar aquilo? A melhor hipótese foi de que o rapaz já era casado lá no norte, e alguém avisou a sua mulher. Parece que um dia antes ele havia recebido uma carta, e depois disso tudo mudou.
A noiva entrou em depressão. Deixou o emprego, perdeu a alegria e a motivação para viver. Foi se recuperando devagar, mas a partir de então era outra. Permaneceu em casa, nunca mais quis sair para estudar ou trabalhar. Tornou-se essa que estava lá agora.

Depois de ouvir tudo fiquei pensativa. Como eu conseguira, até aquele momento, me manter tão indiferente à vida da minha cunhada? Por que aconteceu de nunca ter me interessado, nunca ter perguntado nada ao meu marido?
A resposta era simples: egocentrismo. Não me importava o que acontecia no resto do mundo. Eu, o meu marido, o nosso lar, nossos empregos e nossas diversões: nada fora do meu microuniverso me dizia respeito. Assim foi até o momento em que o universo lá de fora meteu o seu focinho frio e pegajoso nessa bela perfeição.

Já na manhã seguinte olhei com renovado olhar para a minha cunhada. Ela não era ridícula, nem quando ficava sentada conosco sem dizer nada, nem quando colocava aquele vestido de noiva maltrapilho e dançava secretamente a valsa dos noivos. O fantasma da sua valsa dos noivos. Todas as noites, sempre no horário em que deveria ter ocorrido, muitos anos atrás.
Ela não era ridícula, apenas tinha o coração partido.

Após desse dia mudei a minha atitude, não porque planejasse, mas porque os meus sentimentos haviam mudado. Finalmente acolhi de boa vontade a nova pessoa da nossa família, e acredito que ela foi feliz nos anos que lhe restaram.

Quando adoeceu, pedi licença do trabalho e fiquei com ela. Cuidei, levei ao médico, dei banho. Quando faleceu, fui eu quem a preparou para o enterro.
Foi sepultada toda de branco, de véu na cabeça e buquê nas mãos. Fiz questão de lhe colocar um vestido de rendas quase igual àquele traje que vi pelo buraco da fechadura. Nunca contei ao meu marido sobre a valsa dos noivos. Nunca contei a ninguém. Guardarei esse segredo.

Adeus, minha cunhada. Que descanse em paz. Se há alguma vida após a vida, que o seu coração fique curado daquela dor. Que seja feliz e tenha com quem dançar.  Não a Valsa das Flores, mas sim esta outra música de Tchaicovsky, que é alegre e combina muito mais com você: A Bela Adormecida.

Imagem: http://www.gilantiguedades.com.ar

Para ouvir as músicas citadas clique nos respectivos títulos: Valsa das Flores / A Bela Adormecida