Tio
Antônio era padre. Especializou-se na “unção dos enfermos”. Ou “extrema unção”,
como se dizia antigamente.
Nunca
entendi a solicitude do meu tio. Quando recebia um chamado ele largava tudo, vestia os
paramentos, pegava o frasco de óleo bento, a bíblia, e saía apressado. De dia
ou de noite, com sol ou com chuva, calor ou frio, são ou doente.
Era
como se gostasse daquilo. Mas não gostava, ele sofria fazendo
os atendimentos.
Sempre
retornava abatido. Ia direto para o quarto e passava horas ajoelhado no chão,
rezando pela alma da pessoa a quem havia acabado de ungir.
Eu
via tudo isso porque ele morava conosco. Minha mãe dizia que o cunhado não
regulava bem: estava sempre calado e jamais sorria. Meu pai não dizia
nada, aceitava o irmão do jeito que ele era.
Tio
Antônio abandonara a faculdade de filosofia para ser padre. Vocação tardia que
ninguém entendeu. Seu falecimento foi há oito anos. Não quis receber extrema unção. Disse que não
merecia.
Fiquei
ao seu lado a maior parte do tempo enquanto esteve no hospital. A doença não o
impedia de falar, mas ― como sempre ― permaneceu calado. Minutos antes do passamento
é que se manifestou. E falou tudo, falou aos borbotões.
Leigo
que sou, confessou-se a mim, única pessoa ao seu alcance. Queria ser perdoado.
―
Perdoado de quê, meu tio?
―
Eu matei uma pessoa.
Delírio
de moribundo? Já ia começar a contradizê-lo quando ele apontou para a sua velha
bíblia na mesa de cabeceira.
―Me
dê a bíblia.
Menos
mal, pensei. Rezar é melhor do que delirar. Mas ele não queria rezar. Abriu o livro
e retirou um recorte de jornal. Era uma foto amarelada. Mostrava jovens brigando.
Um deles agachado, protegido por um grupo à esquerda, enquanto outros à
direita tentavam atingi-lo com objetos em riste. Acima, o título: “De repente, a violência".
―
O que é isso, tio?
―
Esse moço aí no chão. Era o Fabrício.
Falou
como se eu devesse conhecer o cara.
―
Que Fabrício?
―
Foi ele que eu matei.
Não
falei nada. Falar o quê?
Ele
prosseguiu, sem olhar para mim. Fixava os pés da cama, os olhos parados, sem
expressão.
―
Ninguém sabe que eu matei. Por isso não fui preso. Mas eu sei. Ele sabe. E Deus
sabe. Matei por motivo fútil. Por ciúmes. Destruí uma vida só porque estava
louco de ciúmes.
Fiquei
quieto. Deixei o tio falar. Em nenhum momento o interrompi. Ele continuou.
Falou tudo, de um jorro só.
―
Ele era da engenharia do Mackenzie, eu era da filosofia da USP. Eles apoiavam a
ditadura, nós não. Nunca tínhamos conversado, eu só o conhecia de vista. Na hora
do almoço a minha turma ia no bar do Carioca, e a turma dele também. Uma turma
não conversava com a outra. Só fui trocar duas palavras com o Fabrício lá no Clube
Paulistano. Não foi pela minha vontade nem pela vontade dele, mas sim porque
tínhamos um amigo em comum, o Manolo. Grande vagabundo, o Manolo. Não fazia
nada na vida porque o pai era rico. Passava os dias zanzando, alegre,
simpático, bem apessoado. Generoso também. Nunca se negava a ajudar quem
precisasse de um dinheiro ou de um ombro para se apoiar. Impossível não gostar
do Manolo. Um dia me convidou pra passar uma tarde no clube. Eu fui; lá
chegando o encontrei em conversa animada com aquele mackenzista de direita. Aí que fiquei sabendo do nome e do sobrenome, Fabrício Alexandre do Couto e
Magalhães. Assim mesmo: “do Couto e Magalhães”. Família aristocrática. Ele
também me reconheceu. Não trocamos mais que duas palavras, apesar da insistência
do Manolo em nos entrosar. Passamos o resto da tarde meio emburrados, com o
Manolo de permeio fazendo as suas gracinhas.
Aqui
ele deu uma pausa. Para descansar ou talvez para rever, com os olhos da mente,
as cenas que descrevia. Logo continuou.
―
Na semana seguinte passamos a fingir que não nos conhecíamos quando as nossas
turmas se cruzavam lá no bar do Carioca. Mas em seguida veio outro
convite. Aceitei porque o clube era muito aprazível. Qual não foi minha
decepção quando vi o Fabrício lá de novo! Dessa vez conversamos um pouco mais
para não fazer desfeita ao Manolo. Sem tocar em política. Depois disso passamos
a nos cumprimentar com um aceno de cabeça, sem ninguém perceber, sempre que nos
víamos na hora do almoço.
Outra
pausa. Tive certeza de que não era cansaço, era uma revisitação ao passado.
―
O Manolo parecia empenhado em nos aproximar, porque os convites para o clube
continuaram. No encontro seguinte ele disse claramente que o Fabrício e eu
devíamos nos tornar amigos, já que éramos muito parecidos. Absurdo! Um uspiano
de esquerda confraternizando com um mackenzista de direita? Trocamos olhares de
desprezo, mas não falamos nada. Nosso amigo era um alienado, não sabia o que
estava acontecendo no país. Ou não se importava. Mais uma vez procuramos nos
tratar como pessoas civilizadas em consideração ao Manolo, que no final das
contas era um ótimo parceiro.
Agora
ele demonstrava cansaço. A respiração estava ofegante.
―
Na vez seguinte, Fabrício apareceu no clube com uma moça. Chamava-se Vera
Lúcia. Linda, muito linda. Parecia aquela artista de cinema, a Claudia
Cardinale. Quando vi os dois ali de mãos dadas, e notei como ela era bonita e
como os dois combinavam, tive um sentimento que nunca havia tido na vida.
Inveja, tristeza, frustração, desespero, vontade de chorar! Mas homem não chora
nem demonstra sentimento. Fiquei impassível, mesmo depois da revelação devastadora.
Continuei firme, naquele fim de semana e nos outros. Até hoje não sei como
consegui fingir indiferença. Fabrício ao lado da Vera Lúcia, os dois bonitos,
jovens, alegres, se dando tão bem. Eu tinha que conviver com a minha inveja,
com o ciúme, com a completa desesperança.
O
final da frase quase não ouvi porque o tom de voz foi baixando até terminar em
um arquejo. Recuperou-se e retomou a narrativa.
―
O auge da minha neurose coincidiu com o agravamento das brigas entre
mackenzistas e uspianos. No dia em que tudo aconteceu eu tinha amanhecido muito
mal, depois de varar a madrugada sem dormir. Homem não chora, mas
naquela noite não me segurei. Tanta raiva eu tinha de mim mesmo. Raiva por
estar sentindo aquilo. E a certeza de que nunca poderia ser feliz. Então,
na parte da tarde, estourou o confronto. Por causa da campanha da UNE. Uma turma de secundaristas foi lá
fazer comício para a eleição e a coisa desandou. Os inimigos partiram pra cima dos garotos e a gente resolveu ajudar. Acabou virando guerra. Jogaram bomba incendiária no
nosso prédio, nós invadimos o território deles, e daí pra frente não deu pra
controlar mais nada. Foi quando vi o Fabrício do outro lado da calçada com um
tijolo na mão, pronto pra atirar em alguém. Me juntei ao grupo que foi enfrentá-los. Esse moço aí da fotografia, levantando o guarda-chuva, bateu na cabeça do Fabrício e ele caiu. Nessa hora
peguei o tijolo do chão. Os meus colegas saíram correndo, mas eu fiquei. Vi que
o Fabrício ia se levantar, a guarda-chuvada só tinha deixado ele tonto. Aí fiquei louco. Enxerguei um jeito de me
livrar do problema que me atormentava. Foi inspiração do demônio,
mas sou culpado do mesmo jeito porque me deixei levar. Não pensei duas vezes:
dei com o tijolo na cabeça dele.
Ao chegar nesse ponto ele parou novamente.
Vi que fez esforço para retomar. As lembranças estavam ficando mais penosas.
―
Dessa vez ele caiu pra não se levantar mais. Fugi pensando que o havia matado,
mas ele não estava morto. No hospital descobriram uma trinca na coluna, logo
abaixo do pescoço. Ficou tetraplégico. Morreu pouco tempo depois. A causa da
morte foi pneumonia, consequência da imobilidade. Meu sofrimento, desde a
tijolada até o desfecho fatal, não dá pra descrever. Culpa misturada com
tristeza mas também com alívio, o alívio aumentando a culpa. Eu não sabia o que
fazer. Larguei tudo e fui me penitenciar. Virei padre, tentei ajudar as pessoas
para mostrar a Deus o meu arrependimento. Porque eu me arrependi. Mil vezes viver na
dor e na vergonha do que no remorso e no arrependimento. É por causa desse arrependimento que peço perdão a ti, sobrinho. Você representa Deus para mim
neste momento.
Tio
Antônio ficou me fitando em silêncio. O que eu podia fazer? Estava chocado, mas
coloquei a mão em sua testa. Não sei de onde tirei as palavras:
― O senhor está perdoado, padre Antônio. Eu lhe concedo o perdão pleno e eterno. Fique em
paz.
Ele
suspirou, agradecido. Voltou o olhar para os pés da cama. Nesse momento seu rosto se iluminou. Sorriu. Parecia estar vendo alguém. E pronunciou, alto e claro,
suas últimas palavras:
―
Fabrício, você veio me buscar! Já estou indo, meu amor.
Imagem: "De repente, a violência"
Fotógrafo: Gil Passarelli
Esta foto registrou confronto entre grupos de alunos do Mackenzie
devido às eleições para a União Estadual dos Estudantes de SP.
Venceu o Prêmio Esso de Fotografia em 1968.