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"OS MENINOS DA RUA BETO"

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sábado, 17 de abril de 2021

Tardígrado

Ela voltava da horta quando viu, em frente ao seu barraco, um jovem bonito, bem vestido, em atitude de expectativa. 

--- Doutora Solange? A senhora é a doutora Solange, não é?

Medo, contrariedade, surpresa e estranhamento: tudo isso se mostrou em seu semblante. Aproximou-se, depositou no chão o cesto com algumas raízes de mandioca e uma abóbora pequena.

--- Dotora? Que dotora? Por acaso tenho cara de dotora, moço?  

--- Eu sei que é a senhora. O meu pai reconheceu a senhora numa foto.

--- Que é que você tá falando,  menino? Foto? Que foto? Nunca tirei foto na vida.

--- Vou lhe explicar direitinho. Fui com o meu pai a uma exposição de imagens, e quando ele viu a sua, reconheceu na mesma hora!

--- Não tô entendendo nada do que você tá falando, moço. Vorta pra estrada e continua percurando porque você errô de endereço. 

Ele olhou longamente aquela mulher de meia-idade, mal vestida, a pele curtida de sol, o cabelo escondido sob um pano grosso. Não desistiu.

--- Depois que o meu pai lhe reconheceu, eu fui falar com o fotógrafo. Foi assim que descobri o seu paradeiro. Ele disse que enganou a senhora. Que a senhora não queria, mas ele deu um jeito e fez a foto escondido. 

Uma pausa. Olhou para o chão. Voltou a encará-la e falou devagar:

--- Parece até que foi coisa do destino, mãe. 

A última palavra mexeu com ela. 

--- Mãe? Essa dotora era sua mãe?

--- Era não. É. Quando a senhora fugiu eu tinha só dois anos, por isso não me reconheceu.

A mulher se mostrou emocionada.

--- Não tenho filho, moço. Deus lhe ajude a encontrar a sua mãe. É triste filho sem mãe. 

--- Olha, eu só quero que a senhora saiba que não tem mais perigo, já pode voltar. Meu pai me contou que a senhora era cientista e fez uma descoberta muito importante, mas ficou com medo que caísse em mãos erradas e apagou tudo. 

--- Que é que você tá falando, menino? Num tô intendendo.

Ele ignorou a interrupção. 

--- Daí o chefe do seu grupo de pesquisa quis lhe obrigar a refazer todos os passos da descoberta, porque o resultado valia muito dinheiro. A senhora fugiu para não ser obrigada a revelar os detalhes, e também para proteger a sua família. 

Ela ficou olhando o jovem. Agora a expectativa era dela.

--- Mas esse cara já morreu, e ele era o único que sabia do estudo. Pode ficar tranquila, ninguém mais vai lhe perseguir. Volta comigo e fica com a gente de novo. 

Ela estava quase chorando, mas se segurava.

--- Não entendi nada do que você falou, menino. Mais é muito triste um filho ficá sem a mãe. Inda mais se ela fugiu. Vô rezá pra você incontrá ela, viu?

Ele, cabisbaixo, parecia decepcionado. O pai lhe garantira que a mulher da foto era a sua mãe, sem a menor sombra de dúvida. Talvez fosse, mas nesse caso a negação revelava um grande pavor. De quê? O inimigo estava morto. Ninguém mais sabia da descoberta. Medo de quê? Não fazia sentido. Mais provável que ele estivesse ali fazendo papel de bobo. 

--- Então a senhora me desculpe. Pensei mesmo que tinha encontrado a minha mãe. Pelo visto, o meu pai se enganou. Fique com Deus, então. Está precisando de alguma coisa? O que posso fazer pela senhora?

--- Não, menino. Não tô percisando de nada não. Vai em paz. Tomara que as coisa se ajeite pra você. Vô rezá pra Deus te ajudá. 

Quando o jovem entrou no veículo e rumou para a estrada ela ficou acenando adeus até ele desaparecer na curva. Depois entrou no barraco e sentou no banco perto da janela.  Ficou olhando para as galinhas ciscando no terreiro, o cesto esquecido no chão. Pensava na vida... 

* * *

Afinal, quem era --- ou tinha sido --- essa doutora Solange?

Era médica, trabalhava em pesquisa do câncer e descobriu acidentalmente, por meio de um estudo com tardígrados, uma droga que embora falhasse na cura daquela doença produzia rejuvenescimento nos organismos. A fonte da juventude. 

Assustada com as implicações de tal descoberta, resolveu mantê-la em segredo até decidir o que fazer. Não conseguiu. Tendo se negado a compartilhar os detalhes da pesquisa com o chefe do laboratório, sofreu sequestro e tortura. Nessa altura já tinha destruído tudo: anotações, arranjos experimentais e substâncias químicas. Não revelou nada. Conseguiu fugir, mas teve que deixar para trás sua família e sua vida.

***

Finalmente levantou-se do banco a mulher de meia-idade, mal vestida, a pele curtida de sol, os cabelos escondidos sob um pano grosso.  Foi ao terreiro e recolheu o cesto com as raízes de mandioca e a abóbora pequena. 

Antes de voltar para dentro ficou uns instantes contemplando o horizonte. Pra onde, agora? Tantos anos aperfeiçoando seu novo eu, tentando incorporar aquela personagem.

Pra onde, agora? Qualquer lugar, menos a sua antiga vida. Como poderia contar ao filho que o chefe estava morto porque ela o matara na tentativa de fuga? E como poderia revelar a ele que o seu próprio pai havia facilitado o sequestro depois de aceitar um acordo com o chefe?

Não, impossível voltar. O inimigo ainda estava à espreita.

***

"Tardígrados são animais microscópicos da família dos artrópodes. Conhecidos popularmente como ursos d'água, são muito resistentes: podem sobreviver em temperaturas variando desde duzentos graus negativos até cento e cinquenta positivos. Suportam pressões de seis mil atmosferas e radiações mil vezes maiores do que um ser humano pode aguentar. Algumas espécies brilham no escuro."



sábado, 10 de abril de 2021

"Turning point"

Mil vezes ele perguntou o que havia lá pra cima. Mil vezes lhe responderam que tudo, tanto acima quanto abaixo, era exatamente igual àquele lugar onde estavam. Mas ele nunca acreditou. Alguns seres apareciam ali ocasionalmente; eram perseguidos e mortos para se transformarem em alimento. Vinham sempre do lado de cima e nunca do lado de baixo. Não podia ser tudo igual. Quando chegou à idade adulta a dúvida foi esclarecida. Um ancião o chamou e, falando em voz baixa, contou que eles próprios tinham vindo do lado de cima e para lá deveriam voltar quando o perigo tivesse passado. Isso havia acontecido há muito tempo; certamente já era chegada a hora. Todos ainda tinham muito medo e precisavam de alguém com coragem para ir e depois retornar a fim de convencê-los. Em seguida o ancião lhe deu instruções, entregou-lhe uma tocha apagada, ensinou como acendê-la e recomendou que deveria ser acesa apenas quando sentisse uma forte lufada de ar frio. Assim ele empreendeu a jornada. Levou mais tempo do que havia imaginado: a subida era longa, íngreme, escura, por vezes escorregadia. Sua persistência e disciplina foram recompensadas: enfim chegou a um lugar amplo e fresco onde a luz da tocha lhe revelou o mundo lá fora. O que ele viu à sua frente lhe deu instantaneamente a certeza de que jamais iria voltar.