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Divirta-se com um livro diferente de todos os que você já leu!

"OS MENINOS DA RUA BETO"

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http://inquietovagalume.blogspot.com.br/p/os-meninos-da-rua-beto.html

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domingo, 11 de dezembro de 2016

A bela e a megera

Eu me considero um cara educado. Uso com frequência as palavrinhas mágicas “por favor”, “obrigado”, "me desculpe" e “dá licença”. Me visto com asseio e discrição. Nunca jogo o lixo fora do lixo. Nos transportes públicos evito me sentar nos bancos reservados. A não ser quando estou exausto ou quero aproveitar para ler mais algumas páginas do livro, porque sempre carrego um livro. Mas fico ligado: em todas as paradas suspendo a leitura para ver se não chegou um passageiro precisando mais daquele assento do que eu.
Dias atrás, voltando do trabalho, entrei num vagão de metrô onde os únicos lugares vagos eram os reservados. Como não havia ninguém em pé, achei que não fazia mal descansar um pouco. Tirei da mochila o “Barba ensopada de sangue” do Daniel Galera. Estava ansioso pra saber se o protagonista ia achar o avô maluco que virou ermitão e vivia numa caverna, lá nas montanhas de Garopaba. Corajoso, o protagonista. Eu mesmo ia querer distância dessa figura. Gente louca me apavora.
Duas estações depois, ao levantar os olhos da página, vi na minha frente uma senhora idosa. Parecia saudável, mas já tinha passado dos sessenta há muito tempo. Nem guardei o livro, levantei imediatamente e disse:
― Faz favor, senhora. Senta aqui.
A mulher me olhou como se tivesse ouvido um palavrão. E falou de um jeito bruto, com uma voz aguda que doía no ouvido:
― Tá me dando o lugar por quê? Tá me achando velha demais pra ficar em pé?
Fiquei sem saber como responder. A hesitação durou só um segundo; apelei para a minha criatividade de escritor iniciante:
― Não, de jeito nenhum. É porque a senhora é mulher. Faz parte da educação dar o assento para as mulheres.
A velhinha não desfez a careta de raiva.
― Quer dizer que o senhor acha que nós mulheres somos fracas e temos que ficar sentadas?
Dessa vez nem a minha criatividade de escritor me serviu. Olhei em volta procurando ajuda e reparei numa moça loira, alta, muito bonita, com a mão na boca segurando o riso.
A velhinha doida continuou, com sua voz insuportavelmente aguda:
― Vocês homens são muito engraçados. Acham que a gente é fraca demais pra ficar em pé, mas não é fraca demais pra parir os filhos cabeçudos que vocês fazem na gente. Nem é fraca demais pra esfregar cueca com freada de caminhão.
Disse isso e ficou me encarando com aquela expressão horripilante, aguardando uma resposta só pra ter a chance de continuar com a humilhação. Olhei para a loira. Agora ela ria abertamente, sem disfarçar. Cheguei à conclusão de que não havia o que fazer. Pedi licença e desci na parada seguinte, bem antes da minha estação. Até porque não gostei da maneira com que ela balançava o guarda-chuva (nada feminino) que carregava.
No dia seguinte rezei para não topar com a velhinha doida de novo. Era improvável e não aconteceu. Porém, quarenta e oito horas depois do incidente, com quem me deparei? Com a loira alta, bonita e risonha, aquela que em vez de me ajudar se divertiu com a situação. Assim que me viu aproximou-se e me abordou sem nenhum constrangimento:
― Oi! Foi você que a minha tia importunou anteontem, não foi?
Disse isso sorrindo, como se ainda estivesse achando graça.
― Ela é sua tia?
― Irmã da minha mãe. Mora na minha casa. É completamente maluca.
E começou a rir.
― Ela tem Alzheimer? (Fiz a pergunta estranhando que alguém pudesse dar risada de uma pessoa doente.)
― Não! Sempre foi maluca. Ninguém aguenta ela. Implica com tudo, é impressionante.
― Deve ser algum problema mental.
― Não, é gênio ruim mesmo. Teve uma época que o meu pai colocou ela num asilo, e sabe o que aconteceu?
― Não faço ideia.
Começou a rir de novo e teve que forçar uma pausa para responder:
― Devolveram ela! Nem eles aguentaram!
Na próxima estação muita gente desceu, e nos sentamos lado a lado. Ela disse que havia gostado do meu cavalheirismo e do fato de eu não ter respondido mal às provocações. Achou engraçada a cara que eu fazia enquanto tentava apaziguar a velhinha. E tinha notado o livro na minha mão (ela também gostava de ler). E queria me encontrar de novo no dia seguinte.
Fiquei admirado com a desenvoltura da moça. Par perfeito para um cara tímido como eu, pensei sem querer (querendo). Combinamos nos encontrar na estação onde ela sempre embarcava, ao lado das cadeiras da plataforma.  
Fizemos isso durante uma semana. Entrávamos juntos no trem e íamos conversando durante o percurso. Ela descia três estações antes de mim, mesmo assim tínhamos vinte e cinco minutos de conversa. Na maior parte do tempo falávamos sobre livros, planos para o futuro e os nossos empregos. E também sobre a tia maluca. Ela achava tudo hilário, mas aquelas histórias bizarras me metiam medo. Nem queria imaginar a sensação de conviver com uma pessoa tão desequilibrada. Uma única vez bastou para me deixar traumatizado.
Isso durou até ontem. Ela, que sempre se despedia com um beijo rápido no rosto, dessa vez me deu um selinho. E disse, sem o menor embaraço:
― Amanhã vou te pedir em namoro. Vai pensando, tá?
Uma piscadinha, um beliscãozinho no meu braço, e lá se foi ela, toda maravilhosa a bordo do seu scarpin vermelho de salto alto.
E agora? Uma moça linda e loira, alegre e inteligente, está interessada em mim. Mas como lidar com a tia maluca que mora com ela? Que me apavora até a medula dos ossos?
Preciso dar a resposta daqui a duas horas.
Universo, seu sacana!  Tinha que me trollar desse jeito?!  :(

           Imagem: http://www.paraisofeminino.com.br

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Doçura

Para
Alessandra

Tão menininha ainda, mas já a dúvida:
― Será que ele gosta de mim?
A cartomante pode dizer, mas a minha mãe não me deixa ir.
Tenho que saber. Pulo o muro e vou escondido.
Chego lá, bato na porta.
― A senhora pode ver aí nas cartas se ele gosta de mim?
A cartomante fica me olhando, parada.
― Você é muito nova para essas coisas, menininha.
Percebe a minha decepção e acrescenta, sorrindo:
― Mas sempre será bem-vinda para me visitar e tomar um lanche comigo. Porque para você o tempo ainda é de bolo com guaraná. :)


Imagem: http://www.solalimentos.com.br

sábado, 15 de outubro de 2016

O "Seio de Tétis"

     O governador da ilha demonstrava impaciência e certa irritação, embora estivéssemos conversando havia poucos minutos.
     ― O senhor desculpe, não é má vontade, mas eu sei de antemão que a sua pesquisa não vai ter sucesso. Já recebemos dezenas de geólogos, e todos foram embora do mesmo jeito que chegaram: sem conclusão nenhuma.
     ― É pena eu não ter encontrado nada na literatura científica sobre essas visitas anteriores. Teria chegado aqui com mais preparo.
     ― O senhor não encontrou nada porque não existem publicações. Como não conseguiram explicar o fenômeno, todos resolveram fazer de conta que nunca estiveram aqui.
     Decepcionado, me apeguei à ideia de que os outros não possuíam conhecimentos tão profundos como os meus. Nem instrumentos tão modernos.
     ― O guia vai conduzir o senhor. Esteja à vontade. Quando quiser partir da ilha, venha avisar. Boa sorte.
     Lá fomos nós, o guia e eu, em direção à montanha que jorrava água. Idêntica a um vulcão, porém ― em vez de lava ― expelia água fresca e doce. Ininterruptamente.
     De onde surgia aquele manancial? Como se mantinha à baixa temperatura? Que força projetava a água para cima, à semelhança de um chafariz gigantesco? Por que a montanha não desmoronava apesar do atrito constante com o jorro volumoso?
     O guia disse que jamais chovia ali. A névoa fina e incessante era responsável pelo verde da vegetação. Contou também que certo pesquisador quis perfurar um túnel atravessando a montanha lado a lado; foi expulso imediatamente. Outro se jogou no orifício usando um escafandro; o jato o lançou para fora e ele quase morreu. Essa e outras histórias bizarras me foram relatadas à medida que nos aproximávamos do “Seio de Tétis”, nome da misteriosa montanha.
     A tarde ia caindo. De repente fez-se noite. Não se viam mais os contornos das árvores e das rochas, transformadas em sombras. Tudo escuro, apenas uma luminosidade azul e difusa. O guia parou de repente e eu segui o seu olhar. Estávamos diante de um cone negro que projetava ao céu inacreditáveis esguichos luminosos.
     O magnífico "Seio de Tétis". 
     ― A água é luminescente? Ninguém me disse isso. Como é possível?
     Voltei-me para ele, esperando resposta. Não era mais o guia, e sim o governador ali do meu lado. Olhava-me com a expressão séria e cansada.
     ― Não te falei, geólogo?
     ― Não entendo... Como...?
     ― Você sabe a explicação.
     Sim, eu sabia a explicação. Mas não queria pronunciá-la em voz alta. Deixei que ele falasse.
     ― É muito simples. Você está sonhando.
     Naquele momento percebi no seu olhar um brilho sutil, repentino, que durou menos de um segundo.  Não havia sido reflexo das águas luminosas.
     Meu espírito foi atravessado por uma suspeita. De que a solução para aquele mistério não era, afinal de contas, algo tão simples assim. 


Imagem: http://www.news.com.au

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Piquititico

Meu Piquititico morreu. Eu não vi nada, só fiquei sabendo uma semana depois. Não vi ele morto, não vi ele sendo enterrado, não vi nada. A última lembrança que tenho é de estar com ele dormindo no meu colo. Tão pequenininho, tão bonitinho.
Meu avô paraibano é que tinha esse apelido, foi dele que copiei. Filho de mãe índia e pai espanhol, era baixinho e muito brabo. Cabeludo também, cabelo preto, liso e duro. Diz que só não tinha cabelo em volta dos olhos, na palma das mãos e na planta dos pés. Se chamava Teodorico, mas ninguém dizia “seu Teodorico”. Era “seu Piquititico” mesmo. Minha bisavó foi quem pôs o apelido, por isso ele não se zangava e até gostava de ser chamado assim.
Pois o meu Piquititico era tal e qual: ainda um nenê e já brabinho, com aquelas penugenzinhas pretas crescendo e se espalhando.
Pois então. Eu estava no banco de trás com ele dormindo no meu colo. Meu marido ia dirigindo. Aí veio o caminhão desgovernado e bateu. Por detrás. Meu marido se machucou, mas não muito. Eu e Piquititico batemos a cabeça. Minha cabeça é dura, não quebrou, só sacudiu o cérebro e me deixou inconsciente. Mas ele, coitado, com os ossos ainda molinhos, não teve escapatória.
Acordei no hospital uma semana depois do desastre, e só queria saber dele. Uma coisa que não entendo até hoje: quando me contaram, a minha preocupação não era ele ter morrido, mas sim ele ter sofrido na hora. Me disseram que não. Era impossível ele ter sentido dor porque a batida foi tão forte que não deu tempo de nada. Com certeza morreu dormindo e foi direto para o céu.
Isso já faz um tempo e ainda não entendi o que aconteceu, as pecinhas ainda não se encaixaram nos seus lugares. Continuo mais admirada do que triste com tudo isso.
Sei que posso ter outros, mas nenhum será como o Piquititico. Às vezes pego o seu travesseirinho e fico abraçando, fazendo de conta que é ele. Escondido do meu marido, para ele não achar que eu enlouqueci. Ou pior: ficar com dó de mim.
Meu avô Teodorico é que deve estar contente a estas horas. Certeza de que está se divertindo muito lá no céu, brincando com o bisnetinho que ainda não conhecia. 


Imagem: https://pt.aliexpress.com

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Fergus e Brianna

    Brianna chegou e foi direto para o quarto. Já entrou tirando os sapatos.

― Fergus! Deitado no meu travesseiro, né?
― É macio. Perfumado.
― Tá bom. Mas não acostuma, tá?
― Estou aquecendo pra você.

    A menina largou a bolsa em qualquer lugar e se atirou na cama.

― Ai que cansaço.
― Pode ir contando. Como foi a festa? Ela é bruxa mesmo?
― Ha ha ha! Se ela é bruxa eu sou a Deusa Aine.
― Pelo menos a comida foi boa?
― Foi. Batata frita, sanduíche e refrigerante. De sobremesa, pudim e brigadeiro.
― Sagrados chifres de Cernuno! Não tinha ervas para colocar nos pratos? Louro, erva-doce, alecrim...
― Não! Só ketchup e mostarda!
― Nem um pouquinho de hidromel?
― Nada! Só refrigerante e água.
― Por que ela pensa que é bruxa?
― Ela ganhou um livro sobre o tema. Leu, achou bonito e pá! virou bruxa.
― Se fosse assim eu lia um livro sobre panteras e virava uma pantera negra poderosa no meio de uma floresta selvagem.

    Brianna se espreguiçou toda como uma felina sonolenta.

― Ainda bem que eu já nasci maravilhosa. Não preciso me transformar em nada.
― Além da comida o que mais teve na festa? Dança em volta da fogueira?
― Ah isso teve sim. Foi na área de serviço, em volta de uma churrasqueira portátil cheia de carvão aceso.

    Normalmente impassível, Fergus se remexeu como se alguma coisa o incomodasse.

― Churrasqueira portátil? Não entendo.
― Uma dessas redondas, que parecem um caldeirão.
― Não tinha fogo? Só carvão aceso?
― Isso mesmo. A mãe dela disse que fogo era muito perigoso.

    Fergus abriu a boca mas não emitiu nenhum som. Ficou alguns instantes pensativo.

― Por que na área de serviço e não ao ar livre? Ela não tem um quintal, um jardim?
― Tem. Mas a mãe dela não deixou fazer a dança no quintal por causa da friagem da noite.

    Dessa vez Fergus não se conteve e soltou um grunhido. Imediatamente ouviram-se risadas endoidecidas vindas do corredor. Brianna levantou-se depressa e abriu a porta. Seu irmão mais novo e um coleguinha riam e faziam gestos desencontrados.

― Sai daqui, moleque! Vai procurar o que fazer!

    O garotinho continuou dando gargalhadas e cutucou o amigo:

― Eu não te falei, Felipe? Eu não te falei? A minha irmã conversa com o gato!

    Felipe, sem nenhuma cerimônia, correu para dentro do quarto. Sobre o travesseiro de rendas brancas, em pose majestosa, repousava um belíssimo gato preto. 

     Imóvel, Fergus o encarava com ar de reprovação, uma expressão quase humana nos olhos verdes, luminosos. O menino gritou de susto e saiu correndo. 

― O que foi, Felipe? O que foi? O que aconteceu?

    Sem parar de correr, já descendo as escadas, ele respondeu com voz estridente, carregada de pavor:

― O gato falou comiiiigo! O gato falou comiiiigo!


Imagem: http://www.chickensmoothie.com

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Numa tarde de verão

José Carlos levantou os olhos da papelada para conferir se o ventilador estava mesmo ligado. Estava, mas o calor continuava sufocante. A maioria dos funcionários era jovem e parecia não se importar com o calor nem com o barulho das máquinas de escrever e de somar. Também ele, anos atrás, fora assim. Aprovado no concurso público, a vida resolvida, só tinha que trabalhar direitinho. A noiva, ao saber da aprovação, decretou:
― Agora sim, Zequinha, podemos casar.
Casaram. Puro boato aquela conversa de que funcionário público era folgado. Ele não era nem podia ser, com tantos processos despejados dia após dia sobre a sua mesa. Agora, depois de todos aqueles anos, sentia-se cansado.
Voltou a atenção às folhas timbradas que tinha nas mãos. “Secretaria do Bem Estar Social”. Bem estar? Ele não estava se sentindo bem.
― Chega. Vou-me embora.
Sem outras análises ou considerações, empilhou os papéis, arrumou as pastas, guardou na gaveta carimbos, tinteiros, canetas e mata-borrões, levantou-se e rumou para a porta. Alguns olharam admirados. Não falaram nada, ou por falta de intimidade ou por falta de interesse. Pegou o chapéu e foi pra casa.
O caçula, refestelado na rede da varanda, lia um gibi. Nem o viu chegar. Ao abrir a porta descobriu o que faziam em casa enquanto ele trabalhava. A mulher passava esmalte nas unhas. As filhas liam uma revista “O Cruzeiro”. O rapaz mais velho assistia a um jogo de bola pela televisão.
Todos se voltaram para ele.
― O que foi, Zeca? Algum problema na repartição?
― Pai, o senhor está doente? 
― Patrão, quer um cafezinho?
Nenhuma resposta. Subiu lentamente para o quarto. Trancou a porta e tirou a roupa. Foi para a sacada tomar a fresca sem se importar que o pudessem ver da rua. Desceu as escadas. Mulher, filhos e empregada o observavam calados. Descalço e de cuecas, tranquilo como se estivesse em uma praia, abriu a porta e saiu à varanda. O caçula, percebendo a sua presença, levantou-se atarantado.
José Carlos deixou-se cair na rede. Puxou as abas sobre os olhos, deu um impulso com o pé e ficou lá se balançando. Apenas se balançando... Para lá e para cá, para lá e para cá... 


Imagem: http://www.jardimdecorado.com

Baseado no conto de Raduan Nassar "Aí pelas três da tarde"

sábado, 20 de agosto de 2016

Sexta-feira 13

Dente extraído, desatou-se a sangria. O dentista recomendou ir logo pra casa e colocar gelo. O ônibus nunca demorava; nesse dia demorou. Sangue não parava de sair. Melhor ir de táxi. A corrida ficava nuns dez reais. Perguntou ao taxista se ele tinha troco pra cinquenta. Tinha. Ainda bem, porque começava a sentir tontura. Já em movimento, ao ouvir o destino o taxista parou. Mandou descer e pegar outro, na outra rua: aquela era fora de mão. Em desespero, obedeceu, torcendo para que o próximo viesse logo. Uma mulher chegou e pediu informação. Medo de abrir a boca e causar susto. Lenço na frente, murmurou qualquer coisa. Escondeu rapidamente a mancha vermelha que se formou. Finalmente o táxi. Trânsito difícil. Na hora de pagar, o taxista não tinha troco para cinquenta. 


Imagem: http://www.euvejofloresemvoce.com.br

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Ode à Manteiga

Para
Millôr
Manteiga, meiga manteiga
como eu te achava linda
na manteigueira de cristal
da casa de minha dinda.

A bela cor amarela,
sua macia textura,
fresquinha, com ou sem sal,
a maior das gostosuras.

Lá em casa, infelizmente,
era outra a minha sina.
Para o bem, ou para o mal,
só havia margarina.

Agora que sou adulto
tomo as minhas decisões.
Margarina? Nem a pau!
Só manteiga! Aos borbotões!

Imagem: http://www.notonthehighstreet.com

Poema composto por pura inveja do genial "Ode à margarina", de Millôr Fernandes.
"Essa cara não me é estranha e outros poemas", Companhia das Letras (página 178)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Júlia e o pé de milho

A pequena Júlia enfiou um grão de milho no nariz. Por quê? Por motivo nenhum. O grão que não estourou estava ali, no meio das pipocas. O nariz tinha dois buraquinhos. Pronto. 
A menina nem reparou no desespero da mãe. Concentrou-se no irmão, que apontava para ela e ria feito louco:
― Ha ha ha ha! Vai nascer um pé de milho no nariz da Júlia!!!!
Enquanto a pegavam no colo e corriam para o carro, ela começou a se preocupar.
Um pé de milho crescendo no nariz?
Como fazer para andar por aí com uma planta tão grande saindo da narina, com aquelas folhas todas se arrastando pelo chão? Difícil não tropeçar.
E se alguém quiser fazer pipoca? Tem gente que gosta de pamonha, outros preferem bolo de fubá. Vai ficar todo mundo atrás dela, pedindo espigas. Mais e mais espigas. 
Júlia já se via fazendo força para atender a todos. Como era cansativo!  
E na hora de dormir? Uma complicação ajeitar aquele trambolho no meio das cobertas.
Preocupações demais para uma criança tão pequena. Vontade de chorar.
Começou a fazer biquinho, mas nessa hora o médico disse:
― Consegui!
E mostrou o grão na ponta da pinça.
Alívio. Todos os problemas resolvidos.
― Mãe?
― Que é, Júlia?
― Me compra pipoca?
Imagem: http://hivewallpaper.com/

sábado, 2 de julho de 2016

A batalha do padre Antônio

Tio Antônio era padre. Especializou-se na “unção dos enfermos”. Ou “extrema unção”, como se dizia antigamente.
Nunca entendi a solicitude do meu tio. Quando recebia um chamado ele largava tudo, vestia os paramentos, pegava o frasco de óleo bento, a bíblia, e saía apressado. De dia ou de noite, com sol ou com chuva, calor ou frio, são ou doente.
Era como se gostasse daquilo. Mas não gostava, ele sofria fazendo os atendimentos.   
Sempre retornava abatido. Ia direto para o quarto e passava horas ajoelhado no chão, rezando pela alma da pessoa a quem havia acabado de ungir.
Eu via tudo isso porque ele morava conosco. Minha mãe dizia que o cunhado não regulava bem: estava sempre calado e jamais sorria. Meu pai não dizia nada, aceitava o irmão do jeito que ele era.
Tio Antônio abandonara a faculdade de filosofia para ser padre. Vocação tardia que ninguém entendeu. Seu falecimento foi há oito anos. Não quis receber extrema unção. Disse que não merecia.
Fiquei ao seu lado a maior parte do tempo enquanto esteve no hospital. A doença não o impedia de falar, mas ― como sempre ― permaneceu calado. Minutos antes do passamento é que se manifestou. E falou tudo, falou aos borbotões.
Leigo que sou, confessou-se a mim, única pessoa ao seu alcance. Queria ser perdoado.
― Perdoado de quê, meu tio?
― Eu matei uma pessoa.
Delírio de moribundo? Já ia começar a contradizê-lo quando ele apontou para a sua velha bíblia na mesa de cabeceira.
―Me dê a bíblia.
Menos mal, pensei. Rezar é melhor do que delirar. Mas ele não queria rezar. Abriu o livro e retirou um recorte de jornal. Era uma foto amarelada. Mostrava jovens brigando. Um deles agachado, protegido por um grupo à esquerda, enquanto outros à direita tentavam atingi-lo com objetos em riste. Acima, o título: “De repente, a violência".
― O que é isso, tio?
― Esse moço aí no chão. Era o Fabrício.
Falou como se eu devesse conhecer o cara.
― Que Fabrício?
― Foi ele que eu matei.
Não falei nada. Falar o quê?
Ele prosseguiu, sem olhar para mim. Fixava os pés da cama, os olhos parados, sem expressão.
― Ninguém sabe que eu matei. Por isso não fui preso. Mas eu sei. Ele sabe. E Deus sabe. Matei por motivo fútil. Por ciúmes. Destruí uma vida só porque estava louco de ciúmes.
Fiquei quieto. Deixei o tio falar. Em nenhum momento o interrompi. Ele continuou. Falou tudo, de um jorro só.
― Ele era da engenharia do Mackenzie, eu era da filosofia da USP. Eles apoiavam a ditadura, nós não. Nunca tínhamos conversado, eu só o conhecia de vista. Na hora do almoço a minha turma ia no bar do Carioca, e a turma dele também. Uma turma não conversava com a outra. Só fui trocar duas palavras com o Fabrício lá no Clube Paulistano. Não foi pela minha vontade nem pela vontade dele, mas sim porque tínhamos um amigo em comum, o Manolo. Grande vagabundo, o Manolo. Não fazia nada na vida porque o pai era rico. Passava os dias zanzando, alegre, simpático, bem apessoado. Generoso também. Nunca se negava a ajudar quem precisasse de um dinheiro ou de um ombro para se apoiar. Impossível não gostar do Manolo. Um dia me convidou pra passar uma tarde no clube. Eu fui; lá chegando o encontrei em conversa animada com aquele mackenzista de direita. Aí que fiquei sabendo do nome e do sobrenome, Fabrício Alexandre do Couto e Magalhães. Assim mesmo: “do Couto e Magalhães”. Família aristocrática. Ele também me reconheceu. Não trocamos mais que duas palavras, apesar da insistência do Manolo em nos entrosar. Passamos o resto da tarde meio emburrados, com o Manolo de permeio fazendo as suas gracinhas.
Aqui ele deu uma pausa. Para descansar ou talvez para rever, com os olhos da mente, as cenas que descrevia. Logo continuou.
― Na semana seguinte passamos a fingir que não nos conhecíamos quando as nossas turmas se cruzavam lá no bar do Carioca. Mas em seguida veio outro convite. Aceitei porque o clube era muito aprazível. Qual não foi minha decepção quando vi o Fabrício lá de novo! Dessa vez conversamos um pouco mais para não fazer desfeita ao Manolo. Sem tocar em política. Depois disso passamos a nos cumprimentar com um aceno de cabeça, sem ninguém perceber, sempre que nos víamos na hora do almoço.
Outra pausa. Tive certeza de que não era cansaço, era uma revisitação ao passado.
― O Manolo parecia empenhado em nos aproximar, porque os convites para o clube continuaram. No encontro seguinte ele disse claramente que o Fabrício e eu devíamos nos tornar amigos, já que éramos muito parecidos. Absurdo! Um uspiano de esquerda confraternizando com um mackenzista de direita? Trocamos olhares de desprezo, mas não falamos nada. Nosso amigo era um alienado, não sabia o que estava acontecendo no país. Ou não se importava. Mais uma vez procuramos nos tratar como pessoas civilizadas em consideração ao Manolo, que no final das contas era um ótimo parceiro.
Agora ele demonstrava cansaço. A respiração estava ofegante.
― Na vez seguinte, Fabrício apareceu no clube com uma moça. Chamava-se Vera Lúcia. Linda, muito linda. Parecia aquela artista de cinema, a Claudia Cardinale. Quando vi os dois ali de mãos dadas, e notei como ela era bonita e como os dois combinavam, tive um sentimento que nunca havia tido na vida. Inveja, tristeza, frustração, desespero, vontade de chorar! Mas homem não chora nem demonstra sentimento. Fiquei impassível, mesmo depois da revelação devastadora. Continuei firme, naquele fim de semana e nos outros. Até hoje não sei como consegui fingir indiferença. Fabrício ao lado da Vera Lúcia, os dois bonitos, jovens, alegres, se dando tão bem. Eu tinha que conviver com a minha inveja, com o ciúme, com a completa desesperança.
O final da frase quase não ouvi porque o tom de voz foi baixando até terminar em um arquejo. Recuperou-se e retomou a narrativa.
― O auge da minha neurose coincidiu com o agravamento das brigas entre mackenzistas e uspianos. No dia em que tudo aconteceu eu tinha amanhecido muito mal, depois de varar a madrugada sem dormir. Homem não chora, mas naquela noite não me segurei. Tanta raiva eu tinha de mim mesmo. Raiva por estar sentindo aquilo. E a certeza de que nunca poderia ser feliz. Então, na parte da tarde, estourou o confronto. Por causa da campanha da UNE. Uma turma de secundaristas foi lá fazer comício para a eleição e a coisa desandou. Os inimigos partiram pra cima dos garotos e a gente resolveu ajudar. Acabou virando guerra. Jogaram bomba incendiária no nosso prédio, nós invadimos o território deles, e daí pra frente não deu pra controlar mais nada. Foi quando vi o Fabrício do outro lado da calçada com um tijolo na mão, pronto pra atirar em alguém. Me juntei ao grupo que foi enfrentá-los. Esse moço aí da fotografia, levantando o guarda-chuva, bateu na cabeça do Fabrício e ele caiu. Nessa hora peguei o tijolo do chão. Os meus colegas saíram correndo, mas eu fiquei. Vi que o Fabrício ia se levantar, a guarda-chuvada só tinha deixado ele tonto.  Aí fiquei louco. Enxerguei um jeito de me livrar do problema que me atormentava. Foi inspiração do demônio, mas sou culpado do mesmo jeito porque me deixei levar. Não pensei duas vezes: dei com o tijolo na cabeça dele.
Ao chegar nesse ponto ele parou novamente. Vi que fez esforço para retomar. As lembranças estavam ficando mais penosas.
― Dessa vez ele caiu pra não se levantar mais. Fugi pensando que o havia matado, mas ele não estava morto. No hospital descobriram uma trinca na coluna, logo abaixo do pescoço. Ficou tetraplégico. Morreu pouco tempo depois. A causa da morte foi pneumonia, consequência da imobilidade. Meu sofrimento, desde a tijolada até o desfecho fatal, não dá pra descrever. Culpa misturada com tristeza mas também com alívio, o alívio aumentando a culpa. Eu não sabia o que fazer. Larguei tudo e fui me penitenciar. Virei padre, tentei ajudar as pessoas para mostrar a Deus o meu arrependimento. Porque eu me arrependi. Mil vezes viver na dor e na vergonha do que no remorso e no arrependimento. É por causa desse arrependimento que peço perdão a ti, sobrinho. Você representa Deus para mim neste momento.
Tio Antônio ficou me fitando em silêncio. O que eu podia fazer? Estava chocado, mas coloquei a mão em sua testa. Não sei de onde tirei as palavras:
― O senhor está perdoado, padre Antônio. Eu lhe concedo o perdão pleno e eterno. Fique em paz.
Ele suspirou, agradecido. Voltou o olhar para os pés da cama. Nesse momento seu rosto se iluminou. Sorriu. Parecia estar vendo alguém. E pronunciou, alto e claro, suas últimas palavras:
― Fabrício, você veio me buscar! Já estou indo, meu amor.


Imagem: "De repente, a violência" 
Fotógrafo: Gil Passarelli

Esta foto registrou confronto entre grupos de alunos do Mackenzie 
devido às eleições para a União Estadual dos Estudantes de SP. 
Venceu o Prêmio Esso de Fotografia em 1968.

sábado, 30 de abril de 2016

Marilene e eu na chácara de flores

Suponha que você tivesse a chance de voltar no tempo. A um único momento no passado. Qual momento escolheria?
Difícil decisão, não é?
Posso pensar em cerca de cinco ocasiões, no máximo seis. 
Se o critério de escolha for a qualidade das lembranças deixadas, então o número cai para três ou quatro. Vou escolher dentre estas.
Pronto, escolhi. Entro na máquina do tempo e aperto o botão. Vejo as luzinhas piscarem, ouço zumbidos e sinto pequenas oscilações.
Agora cessou tudo: fim da viagem. Aqui estou... Onde?
Início de tarde, sábado cheio de sol. Muitas flores ao redor. Uma menina louca me segurando pelos ombros e gritando: “Me solta! Me solta! Deixa eu me atirar!”
Espantosamente, enquanto faz tal cena dramática ela dá risada. Está alegre e mesmo assim quer se atirar nos trilhos do trem passando ao lado? Estranho paradoxo.
Mais estranho é o fato de eu ter escolhido este momento para reviver. Porém, como há explicação para (quase) tudo neste mundo, passo a esclarecer o acontecido.
Marilene e eu nos conhecemos no colégio, primeiro ano do Curso Científico.   
Terá sido o amor pela ciência, o que nos uniu? Negativo. Ela gostava de biologia e eu de física. A união foi motivada por um grupo de rock. Jamais havíamos conhecido outras pessoas fanáticas pelos “Monkees”. Bastou isso para iniciarmos a amizade que duraria toda a nossa vida.
Em tempos sem internet e de acesso raro ao telefone, fundamos um clube de correspondência por meio do qual trocávamos ideias com outras fãs da banda.
Eram cartas pra lá, cartas pra cá, correspondentes em vários locais do Brasil e até no exterior. A maioria do estado de São Paulo; todas da nossa idade.
Éramos convidadas para visitar as que moravam na cidade e arredores. Contrariando nossos hábitos reclusos, vez por outra aceitávamos os convites.
Grande ousadia sair de casa sem a supervisão dos rigorosos pais, em direção a destinos nunca antes explorados, na total dependência dos mapinhas desenhados à mão pelas nossas amigas de correspondência.
Década de 1960, famílias conservadoras de classe média baixa: onde já se viu meninas de dezessete anos, inexperientes, saindo assim sozinhas pelo mundo?
Saíamos, viajávamos de ônibus por longo tempo, chegávamos às casas das amigas e ficávamos horas e horas conversando e ouvindo os discos da banda. De onde tirávamos tanto assunto? Faz parte dos milagres da adolescência a multiplicação dos temas de conversa. Perguntem aos professores.
Afinal tínhamos coisas importantíssimas para comentar. O baterista? Charmoso e inteligentíssimo. O tecladista, além de muito culto, era dono do sorriso mais lindo. O galã, todas concordavam, era o vocalista. Mas o guitarrista, de personalidade estranha e adorável, compunha as melhores músicas.
O bate-papo ia por aí afora, antes e depois do lanche da tarde, até começar a escurecer e alguém lembrar que morávamos longe e a condução piorava à noite.
Voltávamos para casa cansadas e felizes, repassando todos os comentários, fazendo planos, falando sem parar.
Certa ocasião fomos ver a nossa amiga Sonia, lá no bairro de Cangaíba. Descemos do ônibus e iniciamos a subida da rua desenhada no mapinha. Dia lindo. À esquerda, inesperadamente, uma chácara de flores surgiu: extenso jardim multicolorido.
Por mim, teríamos passado reto. Afinal tínhamos marcado hora para chegar à casa da Sonia. Porém a Marilene queria entrar e ver de perto aquelas plantas e flores.
Como sempre, eu (a de ciências exatas, com meu raciocínio lógico e inabalável bom senso) acabava cedendo às vontades da Marilene (com seu raciocínio biológico sem tanta exatidão porém com muito maior teimosia). E lá fomos nós por aquele terreno largo, comprido, terminando à beira de uma linha férrea.
Hoje, quando me lembro, parece que sonhei a tarde de céu azul, o ar fresquinho, os canteiros mal cuidados e ainda assim completamente floridos.
Andamos sem pressa até chegar ao lado da linha; a Marilene examinava um raminho quando começou a passar o trem.
Inesperadamente ela abandonou toda a sua habitual sisudez, largou o raminho, agarrou os meus ombros e começou a gritar como se quisesse se atirar nos trilhos: “Me solta! Me solta!”
Eu não teria ficado mais admirada se estivesse vendo o arcebispo da época, Dom Agnelo Rossi, dançando rock de batina e tudo. A Marilene, que nunca falava alto, jamais se alterava e nem sequer andava depressa, agindo daquela maneira? Era maluco, mas divertido, então embarquei na brincadeira e também comecei a gritar: “Não se atire! Não se atire!”
As pessoas no trem olhavam com curiosidade a cena. Imagino se chegaram a perceber que estávamos, as duas, rindo às gargalhadas.
O trem passou, a brincadeira acabou. Saímos de lá direto para a casa da Sonia, onde conversamos bastante, ouvimos música, brincamos com o cachorrinho, e rimos mais um pouco.
Desconheço as motivações daquele momento de completa descontração, único em toda a breve existência da minha amiga. Sou incapaz de fazer análises psicológicas. O importante é que aconteceu, que eu estava lá e que me lembro.
E, se pudesse, não entraria nunca mais nessa máquina do tempo que está aí de porta aberta e escancarada, pronta para me levar de volta ao futuro. 

Imagem: http://br.freepik.com

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Epitáfio

Isto aconteceu há muito tempo, quando eu era criança, num lugar distante de tudo.
A vizinha deu à luz em sua casa, e a criança morreu.
Ao chegarmos para o velório, o bebê ainda estava na cama ao lado da mãe. Um menino bonito que parecia dormir. Tinha o semblante de alguém que adormecera muito cansado, depois de uma labuta penosa.
A mãe aparentava abatimento físico, mas estava sorridente. Conversava com uma moça e de vez em quando as duas davam risadas.
O anjinho ali, dormindo o seu sono eterno, e a mãe toda contente.
Na hora do batismo a moça risonha pegou uma vela acesa e aproximou-se do corpinho inerte.
― Eu te batizo em nome do Pai, do Filho...
Um acesso de riso a interrompeu. Esforçou-se para ficar séria e retomou:
― Eu te batizo em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.
Não me recordo se algum nome foi atribuído ao bebê. Não sei se o enterraram em um cemitério ou ali mesmo no quintal, ao pé do abacateiro.
Desde então imagino, pregada no tronco da árvore, uma lápide feita de folha de caderno, escrita com lápis de cor e letra de criança:
Anjinho,
foi melhor assim.


Imagem: Jeronymo Artur
http://heyartur.blogspot.com.br/

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Ovelha negra

Ouvi barulho na minha porta e abri os olhos. Era o meu pai entrando no quarto. Sem bater, como sempre. Já cansei de reclamar da falta de privacidade, nem falo mais nada.
― Dormindo de dia, Rita?
― Não, pai. Tava lendo.
Mostrei a capa do livro. Ele encostou-se ao armário e cruzou os braços, a cara amarrada.
― Olha aqui, Rita, já faz um ano que você se formou no colégio. Não dá mais pra esperar, você tem que resolver a sua vida.
Conversa chata. Quantas vezes já falamos sobre isso sem chegarmos a nenhuma conclusão?
― Ainda não sei o que quero fazer, pai.
― Então vai fazer qualquer coisa. Chega de ficar aí parada. Você vai sair hoje e se matricular num cursinho. Ano que vem é faculdade, ou então não te sustento mais.
Nó na garganta. Olho cheio d’água. A voz tremeu ao responder:
― Pai, o senhor tem dinheiro. Não precisa do meu salário.
― Não é pelo dinheiro, é pela situação absurda. Todo mundo faz alguma coisa, você só lê e ouve música. Já fez teste vocacional, agora vai cuidar da vida.
Falou e saiu.
O teste vocacional deu Agronomia. Nem sei o que é Agronomia. Meu Deus... E agora?


Imagem: https://onmogul.com

Clique para ouvir: Ovelha Negra (Rita Lee)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Ovo frito

A mesa simples de madeira está coberta pela toalha xadrez verde e branca. Sinto sob as mãos a textura macia do pano já envelhecido enquanto espero o almoço.
No centro da mesa, uma caneca de plástico azul exibe um cacho de rosas vermelhas, as mesmas rosas minúsculas da trepadeira que cobre o portão da entrada. Essa caneca eu conheço: é onde costumava tomar meu café com leite todas as manhãs.
Deste lado das flores, o jarro com suco de maracujá, doce e geladinho; do outro, a travessa de salada: folhas de alface, rodelas de tomate e fatias finas de cebola. Sobre o viço dos vegetais o molho de azeite e vinagre espalha seu brilho saboroso.
Arroz e feijão já estão no prato. Vontade de começar a comer, porque o cheiro é convidativo. Arroz branquinho, caprichado, ainda soltando vapor. Feijão de caldo grosso, com pedaços de linguiça defumada, atiçando o apetite. Mas vale a pena esperar pelo ovo frito, o meu predileto, de gema mole.
Finalmente aqui está. Uso o canto do garfo para cortar a gema e deixo o líquido espesso se misturar ao arroz. Ficou amarelo e ainda mais gostoso. Não sei o que é melhor do que isso.
Talvez apenas o sorriso da minha mãe a me observar.
― Está bom, meu filho?