Sou uma idosa de aparência frágil. Vivo em uma cidade perigosa, por isso saio pouco de casa. Além do risco de assaltos há o problema das calçadas irregulares. Ser vítima de assalto ou de queda: duas possibilidades desencorajadoras.
Passo algum tempo, todos os dias, escrevendo. Antigamente eu fazia planos de publicar as minhas histórias, de me tornar escritora em tempo integral. Agora não tenho mais expectativas. De nada. Escrevo para me divertir, para exercer a criatividade, para manter os neurônios funcionando. Sou sozinha, não posso me dar ao luxo de perder a sanidade mental. Quem iria cuidar de mim?
Às vezes fico pensando que após a minha morte virá alguém para esvaziar o apartamento, e esse alguém vai encontrar as pastas onde guardo os meus escritos. Porque escrevo à mão, como se fazia antigamente. Pois essa pessoa há de ficar curiosa, lerá alguns contos e, achando-os maravilhosos, vai recolher e levar consigo todas as pastas. Depois de algum tempo todo esse material será publicado em diversos livros, que farão muito sucesso. E receberão prêmios! (Quem sabe até um Nobel de Literatura?!)
De volta ao mundo real.
Semana passada aconteceu um fato pitoresco. Como já disse, evito sair de casa, porém é preciso pagar contas, fazer compras, ir de vez em quando às consultas.
Daí que estava a caminho do banco quando fui abordada por um jovem. Nem percebi quando ele se aproximou porque estava prestando atenção na calçada cheia de buracos. De repente ele estava ao meu lado, e falou com muita firmeza:
--- Aí, dona. Vai me passando o celular.
Olhei para ele e fiquei paralisada por alguns segundos devido à surpresa. Ele insistiu:
--- Vai logo, dona!
Sem desviar os olhos, abri o maior sorriso.
--- Rafael! É você, meu neto? Já está um moção! Veio ver a sua avó?
O rapaz ficou irritado:
--- Tu é demente, dona? Que neto que nada, me passa logo as suas coisas!
Nem me abalei. Continuei no mesmo tom:
--- Não mudou nada, né Rafinha? Sempre chamando a sua avó de louca. Mas por que você não vem comigo, em vez de ficar aí falando bobagens?
Nessa hora percebi um brilho no olhar do jovem. Deve ter pensado: "Essa maluca vai me levar até a casa dela? Tô vendo vantagem."
Falando em voz mais baixa me perguntou:
--- Onde a senhora está indo?
E eu:
--- Tô indo ao cemitério. Faz tempo que não visito o seu túmulo, meu neto. Preciso trocar as flores. Foi por isso que você veio, né? Sentiu a minha falta, não sentiu?
Uma expressão de repulsa apareceu em seu rosto. A rispidez voltou.
--- Tá falando do quê, velha louca?
Antes que ele continuasse, interrompi com energia:
--- Olha aqui, Rafinha, essa sua mania de me chamar de louca tem que acabar. Foi por isso que perdi a calma com você daquela vez.
Em seguida amenizei um pouco:
--- Falando nisso, já que você está aqui quero aproveitar pra te pedir perdão. Estou muito arrependida.
Ele não falou nada, nem dei tempo.
--- Arrependida do que te fiz, Rafinha. Não se lembra mais de como perdeu a vida?
A repulsa se misturou ao horror. Ele deu um passo para trás. Continuei, já me exaltando um pouco:
--- Me arrependi sim, mas a culpa também foi sua. Quantas vezes já tinha pedido pra você ter mais respeito comigo? Mas não adiantava. Aquele dia perdi a calma, bem na hora em que estava cortando o pão. Era pra você que eu estava cortando aquele pão, Rafinha. E olha, vou te dizer: nem foram as palavras que fizeram o meu sangue subir, foi o ar de deboche. Uma criança de sete anos e já debochada daquele jeito.
O rapaz começou a se retirar, olhando de lado, meio assustado e meio curioso. Aproveitei para fazer uns gestos exagerados.
--- Que decepção, Rafael. Já vi que você não tomou jeito. Será que vou ter que fazer aquilo outra vez?
Abri a bolsa e comecei a remexer, como se estivesse procurando alguma coisa. O assaltante virou as costas e se afastou depressa sem olhar para trás.
Dessa vez me livrei, mas desde então tenho pensado em me mudar para algum lugar mais tranquilo.
Nem todo assaltante vai se comportar como esse, se deixando levar pelo roteiro de "Uma doce velhinha", um conto despretensioso que acabo de escrever.
4 comentários:
Uma expertise para lidar com situações amargas...hahha...gostei do tom e do humor.
Obrigada! 😄
Adorei sua ideia de lidar com o meliante, mas é preciso valentia, dessa sou carente. Vou querer ler mais e conhecer melhor essa doce velhinha durante as próximas segundas-feiras.
Muito obrigada pela visita e pelo comentário! 💗
Mas preciso fazer esta ressalva: a velhinha do conto não sou eu. 😄
Embora também seja "uma idosa de aparência frágil", (1) não escrevo todos os dias; (2) prefiro digitar em vez de usar caneta; (2) ainda tenho esperanças de publicar livros; e -- mais importante que tudo -- jamais teria o sangue frio dessa ilustre senhora! 😂 kkkkkk!!!
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