Onde comprar "Os meninos da Rua Beto"



Divirta-se com um livro diferente de todos os que você já leu!

"OS MENINOS DA RUA BETO"

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http://inquietovagalume.blogspot.com.br/p/os-meninos-da-rua-beto.html

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segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Conto de Natal

Capítulo do livro "Os meninos da Rua Beto"

Dezembro de 1964
      
          Mesmo quando não precisava ajudar no sustento da família, a maioria dos meninos arranjava algum trabalho a fim de ter um dinheirinho no bolso, já que o hábito da mesada não existia então. As meninas não podiam fazer o mesmo por causa das suas “obrigações” domésticas.
          Aos dez anos de idade o meu irmão e o Izaías vendiam pirulitos. Esses pirulitos nada mais eram do que açúcar caramelizado, despejado ainda quente e viscoso dentro de pequenos cones de papel. Enquanto o xarope grosso estava esfriando e se solidificando, espetavam-se palitinhos de madeira dentro de cada cone. Depois de frios, os pirulitos eram acomodados em orifícios redondos de tabuleiros de madeira chamados “bancas”.

Imagem: http://papjerimum.blogspot.com.br

          O fabricante de pirulitos “empregava” vários garotos que percorriam as ruas com as bancas dependuradas no pescoço por meio de cordinhas. Lá pelos meados dos anos sessentas, antes de as crianças tornarem-se consumidoras de produtos industrializados, esse tipo de mercadoria tinha ainda uma boa aceitação.
          Naquela véspera de Natal, já que não tinham nada melhor para fazer, o meu irmão e o Izaías resolveram passar o dia inteiro vendendo pirulitos. Junto com eles foi o Neno, garoto de uns sete anos.
          O dia estava ótimo para as vendas. Foram andando, andando, e quando se deram conta estavam muito longe de casa: no Largo São José do Belém, a vários quilômetros de distância.
          O tempo era chuvoso, e quando a chuva apertou eles entraram em uma pastelaria já cheia de gente que também tinha ido se abrigar do aguaceiro. Os pirulitos estavam no fim, mas na banca do Neno ainda havia alguns; então o pessoal começou a comprar os últimos.
          O chinês dono da pastelaria não gostou nem um pouco! Ele começou a dizer:
          ”Aqui patelalia! Aqui vende patel, não vende pilulito!”
          Os meninos compreenderam que estavam sendo convidados para sair, mas o Neno tinha um senso de humor digno de uma criança de sete anos, e ao invés de sair começou a imitar:
          ”Aqui patelalia! Aqui vende patel, não vende pilulito!”
          O chinês, demonstrando uma total incompreensão para com a infância trabalhadora, foi lá dentro, voltou com um canecão de água e jogou no Neno.
          Foram embora, o Neno pingando água e com cara de choro. O meu irmão e o Izaías, para confortar o coleguinha (que adorava frango assado), foram a uma padaria e compraram um frango, desses que ficam girando naquelas assadeiras verticais com porta de vidro.
          Estava tudo perfeito, mas onde iriam comê-lo? Na padaria não havia lugar para sentar, e os bancos do jardim da praça estavam todos molhados. Acabaram resolvendo o problema com simplicidade: já que a chuva tinha parado e o sol reaparecido, sentaram-se na escadaria da igreja, num cantinho onde estava seco e havia uma sombra agradável. Ficaram lá, destrinchando o frango com as mãos, comendo e se lambuzando pacificamente enquanto observavam o lindo chafariz que ainda existia naquele tempo, com seus jatos de água cristalina.
          Sendo véspera de Natal, todo o jardim estava decorado com lâmpadas coloridas e enfeites cintilantes, e na igreja havia missas seguidas. No fim de uma delas começou a sair uma pequena multidão. Foi com esta cena tocante que as pessoas se depararam: três garotos pobremente vestidos (não tinham planejado ir tão longe vendendo pirulitos, por isso saíram de casa vestindo calções, camiseta e sandálias), sentados na escada comendo frango − presumivelmente doado por alguma alma caridosa! Com os corações repletos de amor fraternal após a missa natalina a que haviam acabado de assistir, não tiveram dúvidas: começaram a dar esmolas!
          O Izaías ficou vexadíssimo! Levantou-se depressa e quis devolvê-las! Mas o Neno e o meu irmão, dois notórios caras-de-pau, não deixaram! Continuaram a receber as doações, cuja totalidade acabou superando o dinheiro da venda dos pirulitos. Resolveram na mesma hora comprar outro frango, que comeram no ônibus a caminho de casa.
          Durante a viagem de volta o Izaías, envergonhado com o procedimento dos colegas, sentou-se longe deles, fingindo não os conhecer. De vez em quando olhava para trás indignado, observando os dois porcalhões de mãos engorduradas que comiam despudoradamente o frango adquirido com dinheiro de esmolas.
          Serenai, psicólogos! Nenhum dos dois tornou-se pedinte. Foi a única vez na vida que aceitaram a caridade pública. E que comeram frangos em tão precárias condições de higiene.
Imagem: http://janallegra.blogspot.com.br

terça-feira, 25 de novembro de 2014

"Skyline Pigeon"

Há algumas coisas nesta vida que não entendo.
Vivo aqui nesta casa desde sempre, todos me tratam bem, me trazem brinquedos, brincam comigo e contam histórias. Mas sou proibida de passear sozinha. Há sempre alguém segurando a minha mão quando estamos lá fora. Não posso nem correr atrás das pombinhas, nem subir em árvores, nem nada. Apanhar flores e catar pedrinhas com as duas mãos também é impossível.
Uma noite, quando todos estavam dormindo, tentei sair por uma das janelas. Então percebi: todas têm grades de ferro.
Uma única vez fomos até o limite do jardim, isso depois de eu pedir muito. Só concordaram quando perceberam lágrimas nos meus olhos. Fiquei admirada com a altura do muro. "Para que um muro tão alto?" perguntei. Nenhuma resposta.
Há algum tempo comecei a ter vontade de sair daqui. Eles afirmam que nada existe para além do jardim, mas acho difícil acreditar.
Hoje tentei largar a mão do meu acompanhante. Ele percebeu na hora e segurou mais forte ainda, chegou a doer. Voltamos logo para dentro.
Quando eu era mais jovem não pensava nessas coisas, porém agora vivo atormentada por dúvidas e curiosidades que nunca são esclarecidas.
              Meu desejo é voar para longe daqui. Se pudesse iria agora mesmo. Isso me lembra um dos grandes mistérios que me cercam: por que as outras pessoas não têm asas?

Imagem: http://serialkiller07.deviantart.com

Clique para ouvir: Elton John's "Skyline Pigeon"

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Nosso filho nonato

Meu amor, sei que é zero a chance de você ler esta carta. Não faz mal, é apenas uma conversa comigo mesma. Você é meu leitor imaginário. Imaginar que estou falando com você me ajuda a colocar em ordem os pensamentos.
Quem sabe um dia, por simples curiosidade, você lance o meu nome (caso dele ainda se lembre) em uma máquina de busca - et voilà! Descobre este texto. “Tudo é possível neste mundo de maravilhas!” - já dizia Dona Benta lá no Sítio do Picapau Amarelo, na época em que pica-pau não tinha hífen.
Mas, voltando ao assunto, leia ou não leia tanto faz. Nada mudará no universo.
O caso é o seguinte. Estive pensando naquele ditado: “D’us escreve certo por linhas tortas”. Pensando em como isso é verdadeiro. Existem coisas que parecem ser horríveis e são mesmo, porém evitam que outras piores aconteçam.
Exemplo: quando nos separamos foi horrível (para mim), mas talvez tenha sido melhor para todos, inclusive para a sociedade. Motivo? O nosso filho. O nosso filho que não nasceu e nem ao menos foi concebido. O nosso filho nonato.
Não entendeu nada, aposto. Explicarei em detalhes.
Se tivéssemos ficado juntos certamente teríamos tido pelo menos um filho. Por duas razões. Primeiro, que você sempre foi muito vaidoso e tem em alta conta a sua genética. Lembro-me de comentários seus a esse respeito. Sem dúvida ia querer um filho para perpetuar essa maravilha que você sempre se considerou.
Segundo, que eu sou saudável e fértil. Minha ginecologista diz que os meus ultrassons são obras de arte, dada a perfeição que ela enxerga lá naquelas sombras informes.
O nosso filho seria muito bonito, tenho certeza. Porque você é muito bonito. Cheguei a ver as suas fotos de bebê e posso dizer que nunca houve uma criança tão linda. Eu também fui bonitinha quando pequena. Não tenho provas porque todas as fotos sumiram, mas é o que dizem. Enfim, com toda a probabilidade o nosso nonatinho seria uma graça. Herdaria os nossos olhos claros, a nossa pele boa e os seus cabelos cacheados.
Bonito, saudável, inteligente e rico. Rico sim, porque a profissão que você escolheu é muito lucrativa para quem domina a parte técnica e tem criatividade. E você, além de bonito, é também inteligente e criativo. Maldito seja. Tanta coisa boa em uma só pessoa chega a ser obsceno. O que te salva são os defeitos, tipo essa irritante imaturidade de criança mimada e a falta de educação que você pratica acreditando ser sofisticado. Não fosse isso, eu não te amaria. Seria apaixonada como sempre fui, mas não sentiria amor. Quem consegue amar uma criatura perfeita?
Pois então, já que o nonatinho herdaria tanta coisa boa, qual o problema?
O problema é que ele seria psicopata. Sabe quanta infelicidade um psicopata espalha pelo mundo? Muita.
Está chocado, meu amor? Quer que eu te prove? Provarei.
Começando pela minha família. O meu avô paterno era um sádico asqueroso que gostava de espancar os filhos sem motivo nenhum, só para se desestressar. Traumatizou todos, é óbvio, e ainda chegou ao fim da vida convicto de que havia sido um bom pai. Que tipo de gente é essa? Isso é gente?
Ainda na linhagem paterna, há vários casos de alcoolismo e de mau-caratismo, não necessariamente na mesma pessoa, mas inclusive. Imagine uma frase do tipo: “A que horas vai terminar o enterro da minha mãe? Estou atrasado para um churrasco.” Essa foi proferida por um primo meu. Que ganha rios de dinheiro com atividades ilícitas.
Do lado da minha mãe, as pessoas são emocionalmente frias. Não existe esse negócio de afeto entre irmãos, carinho de mãe pra filho, lealdade, gratidão e coisas do gênero. Lembra-se das minhas fotos que sumiram? Desconfio que a minha mãe jogou todas fora. Quando ela se irrita - o que é frequente - faz coisas assim. Esconde objetos que sabe serem necessários, como óculos ou chaves. Ou que são sentimentalmente importantes, como presentes e lembranças. Quebra outros “por acidente”, joga fora “sem querer”... Eu poderia ficar aqui listando exemplos e mais exemplos. Só pra finalizar, existem casos comprovados de pedofilia desse lado da família.
Pra você ver, meu amor: sou portadora desses genes execráveis que o pobre nonatinho receberia em suas adoráveis e rechonchudas células.
E você não está muito melhor do que eu, se quer saber. Não conheci muito o seu pessoal, mas sei que a sua mãe criava vinte gatos dentro de casa. Acha isso normal?
Aquela vez que você ficou semanas sem falar comigo, lembra? Não lembra? Mas foi o que aconteceu. Parou de falar comigo sem qualquer justificativa. Quando eu perguntava o que estava acontecendo (nas raras vezes em que conseguia chegar perto o suficiente para fazer perguntas) você respondia que “não era nada”. Depois que passou, veio com a história de que tal comportamento não tinha nada de mais, que havia sido apenas "uma fase”.
Uma fase o caramba! Foi quando, após reavaliar todas as suas atitudes estranhas - que foram muitas - compreendi que você tinha problemas mentais. Não bastassem a imaturidade e a falta de educação, você tinha problemas mentais.
Então, amor da minha vida, veja como foi bom não termos tido nenhum filho. Já pensou que estragos irreparáveis poderia fazer um jovem tão belo, tão rico e tão psicopata como ele teria sido?
Melhor que nunca tenha chegado a existir. Nonatinho está lá onde deveria estar, junto com o nosso amor: em lugar nenhum.


Imagem: http://www.thebabycotshop.com

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O príncipe e a bruxa

          Eu era um príncipe, por isso tinha uma fada madrinha. Depois do falecimento prematuro dos meus pais devido a uma enfermidade desconhecida, ela se tornou ainda mais presente na minha vida. Fazia visitas frequentes e me orientava em todas as dúvidas e decisões importantes. Ela sempre afirmava que o grande amor que a minha mãe sentia por mim havia se transferido inteiro para o coração dela. E que amor de mãe é de todos o maior e o mais puro.
          Um dia enamorei-me, e tive sorte: aquela mulher extraordinária retribuiu plenamente os meus sentimentos. Tornamo-nos um casal perfeito. Assim todos afirmavam e nós concordávamos. O casamento parecia ser o único caminho a seguir.
          Eu também tinha uma amiga a quem conhecia desde a adolescência. Uma amizade normal e tranquila, sem sobressaltos. Minha namorada não demonstrava ter nenhum ciúme dessa amiga, nem esta daquela. Por isso a minha vida era totalmente pacífica e eu só esperava terminar os estudos para propor casamento à amada do meu coração.
          Foi quando a fada madrinha apareceu com um semblante preocupado e disse ter algo importante a me dizer; não poderia deixar de fazer esse alerta mesmo se quisesse porque era sua obrigação como madrinha e fada. Segundo suas palavras, o meu casamento aconteceria em breve, isso estava certo, mas era preciso tomar cuidado com uma bruxa que estava tentando amarrar o meu destino ao dela. Se conseguisse, eu seria muito infeliz em sua companhia e só um amor verdadeiro seria capaz de me libertar de tal vínculo. Após isso, um ato de grande coragem de minha parte seria necessário para me restituir a felicidade, caso contrário eu jamais voltaria a ser feliz.
          Desde esse dia uma inquietação corrosiva me dominou. Quem seria a bruxa que me desejava tanto assim? Certamente uma pessoa conhecida e exímia dissimuladora. Se demonstrasse ser capaz de semelhante maldade, seria possível identificá-la e evitá-la. Então deveria ser alguém aparentando justamente o contrário.
          Tornei-me pensativo e taciturno. Olhava em volta tentando identificar a malévola criatura, mas não tinha como descobrir. Pedi ajuda à fada madrinha. Ela respondeu estar proibida de me orientar sobre esse assunto porque envolvia livre arbítrio, o qual não poderia ser influenciado. Senti-me totalmente desamparado. Dúvidas absurdas foram se infiltrando em meu coração. No dia em que a minha namorada me ofereceu um doce e eu tive medo de aceitá-lo, precisei reconhecer dolorosamente: era dela que eu mais suspeitava.
          Nos dias subsequentes, graças a uma profunda reflexão, fui descobrindo vários indícios para apoiar tal hipótese. Por exemplo, ela sempre se mostrava preocupada com a minha alimentação e era normal me oferecer frutas e doces, que eu comia com muito gosto. No entanto, a aparente prova de afeto poderia ser outra coisa. Quais encantamentos haveria naqueles alimentos? Seria essa a fonte da enorme atração que eu sentia por ela?
          Uma vez a surpreendi desenhando, e era o meu rosto que ela desenhava de memória. No momento achei bonito e fiquei feliz com o gesto. Mas, pensando bem, a que se prestaria tal desenho? A um feitiço de amarração?
          E aquele dia quando planejamos nos encontrar na ponte de pedra sobre o lago, e caiu uma terrível tempestade com muito vento, raios e trovões? Eu cheguei atrasado porque esperei a tempestade passar, mas ela estava lá, toda molhada, pálida e com frio, me esperando. Fiquei com muita pena e remorso, e abracei-a para aquecê-la. Considerei um milagre que nada de ruim houvesse acontecido. Agora, olhando sob outro ponto de vista, acho bem estranho que ela, tão pequena e frágil, não tivesse tido medo de ficar exposta ao perigo só para me esperar. Talvez tivesse certeza da sua invulnerabilidade...
          Quanto mais pensava, mais indícios encontrava. Os sonhos tão vívidos com ela, o fato de nunca esquecê-la em nenhum momento, o mistério de haver me apaixonado tão perdidamente por uma pessoa que nada tinha de excepcional além da sua personalidade, a qual poderia muito bem ser falsa...
          Qual a razão de ela não ter ciúmes da minha amiga? Isso não era normal. Eu podia passar horas conversando com essa amiga, até fazer passeios e sessões de estudo, e mesmo assim a minha namorada não perdia a serenidade. Tratava a outra com educação e com um sorriso em todas as ocasiões. Até porque a amiga era mais jovem e mais bonita, algum ciúme seria compreensível. Porém jamais houve qualquer demonstração. De onde vinha tanta confiança?
          O mais grave de tudo era o fato de que ela parecia adivinhar os meus pensamentos. Apenas um olhar era suficiente. Qual outra resposta para isso, senão bruxaria?
          Eu sofri muito, mas não sabia como me desvencilhar daquela situação. Principalmente porque uma parte de mim rejeitava todas essas conclusões e queria esquecer tudo, casar com ela e ser feliz. Porém a outra parte gritava alto dentro de minha mente, era impossível ignorar.
          Por que a fada madrinha se sentiu obrigada a me dar aquele aviso? Por que precisou envenenar a minha alma? Tão mais felizes são as pessoas comuns, a quem ninguém avisa de nada e assim podem viver plenamente o que têm de viver sem sofrimentos antecipados.
          Não sabendo o que fazer, não fiz nada. Fui me tornando cada vez mais indiferente à presença da minha namorada, cada vez mais frio e apático; nada do que ela fazia ou dizia modificava a minha atitude. Quando questionado, eu respondia que algo estranho estava acontecendo comigo, mas que ainda gostava dela da mesma forma. Era apenas uma fase, provavelmente uma longa fase, mas que certamente iria passar. Só não sabia quando.
          Ela esperou durante longos meses, sem me cobrar nem me recriminar. Eu a vi definhando dia a dia perante os meus olhos e senti uma sombra de culpa, mas não o suficiente para ter compaixão. Finalmente ela percebeu que era inútil esperar mais e foi embora em silêncio. Ao vê-la afastar-se, sabendo que nunca mais a veria, uma parte de mim (o coração) sofreu, mas a outra parte (a mente) ficou aliviada. Estava livre da bruxa.
          Quem me ajudou nessa fase tão conturbada foi a minha amiga. Soube me ouvir com muita paciência, me apoiou e me ajudou a superar as mágoas. A maior de todas era o resíduo de dúvida que eu ainda carregava: a de ter sido injusto e ter cometido um grande erro. Ela me convenceu de que eu havia agido acertadamente e que precisava esquecer tudo isso. Vida nova era a melhor atitude dali em diante. Não entendo muito bem como aconteceu, mas pouco tempo depois estávamos noivos.
          Tal como havia dito a fada madrinha, casei-me menos de um ano depois de suas previsões. Embora não sentisse pela amiga a paixão que havia sentido pela namorada, acreditei que um grande amor (o que a amiga sentia por mim) me havia libertado, exatamente como o previsto.
          Tudo estava perfeito. Então de onde vinha aquela infelicidade? De onde vinha aquele desassossego? E a repulsa que crescia mais e mais pela amiga agora esposa?
          Por que jurei amá-la para sempre, se não a amei nunca? Por que a pedi em casamento?
          Como pude deixar ir embora a única pessoa que me completava, que me fazia sentir plenamente vivo, cheio de alegria, de paz e de esperanças? Como pude me convencer de que ela me faria algum mal? Como pude me deixar manipular assim? Como pude me casar com uma bruxa?!
          Ao perceber tudo isso, imediatamente fui embora do castelo. Nenhuma bruxaria, por mais poderosa, seria capaz de me arrastar de volta. O amor verdadeiro (aquele que eu sentia pela minha namorada) me libertou.
          Abandonei tudo e todos, nunca mais quis voltar e nem tornar a ver ninguém. Odeio a bruxa, odeio a fada madrinha. Sinto-me traído e traidor.
          Minha madrinha envenenou a minha alma e depois negou ajuda; minha amiga aproveitou-se da situação e não disse a única coisa que eu precisava e queria ouvir: “siga o seu coração”. Quanto a mim, fui covarde e medroso, deixei-me manipular vergonhosamente.
          Até hoje, a segunda condição para a reconquista da felicidade, o ato de coragem que eu deveria praticar, não aconteceu. Nunca tive coragem de procurar a minha amada, e jamais terei. Como poderia me apresentar diante dela e pedir o seu perdão? Eu a julguei, condenei e apliquei a pena sem nunca lhe ter dado a chance de defesa.
          Consigo agora enxergar o quanto fui egoísta não pensando uma vez sequer, com seriedade, no seu sofrimento. Que deve ter sido imenso. Afinal, nunca me expliquei. Nunca disse adeus. Nunca a libertei para que ela pudesse procurar a felicidade com outra pessoa.
          Ainda assim, é melhor que tudo continue como está. Se eu aparecer diante dela e disser que a desprezei por acreditar que era uma bruxa, será mais um punhal no seu coração. Melhor será que me esqueça ou que me odeie. Eu viverei assim como mereço: infeliz para sempre.

Imagem: http://www.kevinalfredstrom.com

domingo, 26 de outubro de 2014

A moça de vestido florido

Estava eu em uma livraria, na seção de Infantojuvenis, pesquisando editoras. Queria descobrir quais publicavam o tipo de história que eu tinha escrito para encaminhar o meu “original”.

Encontro um livro sobre Ciências, paradidático muito bonito, bem produzido, com lindas ilustrações. Começo a folhear e vejo que não é apenas bonito: o conteúdo também é ótimo. Viro-me para a colega que me acompanhava, mostro-lhe o livro e comento a boa impressão que me causou.

Uma moça perto de nós, ao ouvir a conversa, disse:

“Eu conheço o autor. Trabalho com ele. É professor da matéria e entende bastante do assunto. Uma ótima pessoa, e escreve muito bem.”

No mesmo instante me veio uma pergunta à mente. Pergunta que não poderia fazer:

“Ele sabe que você o ama?”

Esquisito adivinhar o que vai pela cabeça ou pelo coração de outra pessoa. Algumas vezes não dá para explicar, como saber o sexo do bebê antes da ultrassonografia. Nesse caso, porém, era fácil. O tom de voz, a expressão no olhar, até a gesticulação. O sorriso triste.

Não precisei perguntar, ela não precisou responder. Ela o amava e ele nem suspeitava.

Depois de alguns comentários nos despedimos, mas nunca me esqueci daquela moça clarinha de vestido florido que tinha um amor secreto. Que ela pensava ser secreto, porque os olhos diziam tudo. Só ele não via nada...

Imagem: http://favim.com

domingo, 19 de outubro de 2014

O monstro no armário

Não sei por que me fazem tantas perguntas. Parece até que eu tenho alguma culpa no que aconteceu. Pelo contrário, tentei evitar. Mas ela não me acreditava.
Toda noite eu dizia: “Babá, tranque a porta desse armário senão eu não durmo aqui.”
E ela: “Não seja medroso, menino. Não tem nada no armário.”
E eu: “Tem sim. Tem um monstro que vai sair se a porta ficar destrancada.”
E ela: “Então por que ele não sai de dia? A porta fica aberta e escancarada o dia inteiro. Por que ele nunca saiu?”
E eu: "É porque ele não suporta a claridade. Quando todas as luzes estão apagadas, aí sim é a hora em que ele gosta de sair.”
E ela: “Você já viu esse monstro alguma vez, pra ter tanta certeza?”
E eu: “Não vi com os meus olhos nem ouvi com os meus ouvidos, mas sei que ele está lá. Tenho certeza.”
E ela: “Agora me explique, menino. Esse armário é pequeno, atrás dele só tem a parede, embaixo só tem o chão. Onde é que o monstro se esconde, que a gente nunca vê nem quando tira tudo de dentro pra fazer limpeza?”
E eu: “Não tenho a explicação. Só sei o que sei.”
E ela: “Então durma com a luz acesa, oras.”
E eu: “Não consigo dormir com luz acesa, você sabe muito bem.”
E ela: “Me responda uma pergunta. Se o monstro é assim poderoso, por que não arromba essa fechadura tão fraquinha? É a coisa mais fácil do mundo, até eu consigo se quiser.”
E eu: “Não sei, babá. Isso também não sei responder. Coisas de monstros.”
Ela não me acreditava. Eu dizia e repetia, e ela nunca acreditou. Nessa noite entrou aqui enquanto eu estava dormindo e só de teimosa foi lá e abriu o armário. Acho que queria me provar que não tinha nada lá dentro. Aí aconteceu o que aconteceu e não pude evitar. Só tive tempo de acender a luz bem depressa quando acordei com os gritos. O monstro fugiu por causa da claridade, mas já era tarde demais.
Coitada da babá... Era meio burra, mas bem boazinha. Coisa chata, não?

Imagem: http://yanareku.deviantart.com

sábado, 18 de outubro de 2014

A mãe-do-ouro

Minha mãe morreu quando eu nasci, então o meu pai me trouxe para ser criada aqui no sítio dos meus avós maternos, enquanto ele voltou à cidade, para a sua vida de solteiro.
Tive uma infância maravilhosa. Minha avó sempre me contava histórias sobre a minha mãe, mostrava retratos, e me colocava para dormir no quarto que tinha sido dela. Por tudo isso, e principalmente pelo carinho que me dava, não cheguei a sentir falta do afeto materno.
Meu pai nunca foi próximo. Eu só me lembrava da sua existência duas vezes por ano, no Natal e no meu aniversário, porque nessas datas ele mandava algum presentinho. Deve ter me visitado algumas vezes, só que não guardei na memória nenhuma dessas visitas.
Quando eu tinha quatro anos vieram me dizer que ele ia se casar de novo e que eu seria a daminha de honra do casamento. Disso me lembro perfeitamente. Fiquei admirada, curiosa, e com um pouco de medo. O que era daminha de honra?
Minha avó disse que fiquei bem bonita com aquele vestidinho branco enfeitado com botões de rosa e lacinhos de seda, mas só me lembro da noiva, que me abraçou e me beijou efusivamente. Fiquei assustada, não só com aquela descabida demonstração de ternura mas também por causa do cabelo vermelho e da pele muito branca, cheia de sardas. Nunca tinha visto alguém de cabelo vermelho e nem com tantas sardas.
Voltamos para o sítio, esqueci completamente o fato, até que, passado algum tempo, fiquei sabendo que tinha um irmãozinho. Não me interessei em saber os detalhes, mesmo assim disseram que ele se chamava Narciso.
“Narciso? Que nome feio!”
“Não é feio não. É o nome de uma flor muito bonita.”
Continuei achando feio, mas já que o assunto não era importante, deixei pra lá.
Mais ou menos por essa época começou a acontecer uma coisa estranha. Era estranha mas não era assustadora.
Depois que a minha avó me colocava na cama ela sempre se deitava ao meu lado, pegava a minha mão e juntas ficávamos olhando o teto, onde havia uma porção de estrelinhas cintilantes. Ficávamos olhando as estrelinhas e ela conversava um pouco comigo, me contando uma historinha, algum caso da minha mãe, ou falando sobre qualquer acontecimento daquele dia. Então eu dormia sem perceber.
Mas uma noite acordei com o barulho que ela fez ao sair e, estando virada para o lado da janela, notei uma luminosidade lá fora. Não uma luminosidade qualquer. Era uma luz verde que se movia, e eu podia vê-la pelas fendas da veneziana.
Não fiquei com medo e voltei a dormir tranquilamente. No outro dia perguntei à minha avó o que era aquilo. Ela respondeu que devia ser um vaga-lume. Fiquei quieta mas não acreditei, porque vaga-lume não tinha uma luz tão forte. Só se fosse um vaga-lume gigante, coisa que não existia.
Todas as noites a partir de então eu via a luz verde movendo-se diante da janela. Só aparecia após a minha avó ter saído do quarto. Nunca me incomodei com aquilo. Muito tempo passou. Uma noite, quando eu já tinha uns nove anos, resolvi abrir a janela para olhar de perto.
Jamais me esquecerei. Empurrei devagar as folhas da veneziana, com cuidado para não espantar a luz. Deu certo, porque ela não fugiu. Era uma linda bola luminosa do tamanho de um coco verde. Uma esfera translúcida, imaterial, de um verde cambiante com reflexos azuis. Fiquei lá quieta, olhando, enquanto ela pairava à minha frente oscilando suavemente para cima e para baixo, para um lado e para o outro. Não tive medo nenhum. Quando cansei, fechei a janela e fui dormir.
Virou um hábito. Sempre que a minha avó ia embora pensando que a sua neta dormia, eu me levantava silenciosamente e abria devagarinho a janela. Às vezes conversava com a bola luminosa. Não me respondia com palavras, mas alterava ligeiramente a cor e a oscilação. Eu interpretava esses sinais como bem me convinha, achando que ela estava concordando comigo, ou sugerindo alguma coisa, ou dando uma resposta.
Um dia ouvi certa conversa entre o meu avô e um empregado do sítio. Era sobre uma coisa chamada “mãe-do-ouro”. Fiquei prestando atenção porque nunca poderia imaginar que ouro tivesse mãe. O homem estava dizendo ao meu avô que alguém tinha visto uma “mãe-do-ouro” ali perto. Meu avô respondeu simplesmente que se continuasse acontecendo ele ia investigar.
Depois que o empregado saiu perguntei-lhe quem era essa tal “mãe-do-ouro”. Ele explicou que se tratava apenas de uma crendice popular. Seriam bolas luminosas que aparecem em lugares onde há minas de ouro desconhecidas ou então tesouros enterrados.
“Tudo besteira. Esse povo vê vaga-lume ou fogo-fátuo e fica inventando histórias.”
Eu sabia que não era crendice, mas não falei nada. Ao invés, perguntei-lhe o que era fogo-fátuo.
Nessa noite pulei a janela para chegar mais perto da “mãe-do-ouro”. Não toquei nela, mas achei maravilhoso andar em torno, aproximar o rosto, andar com ela ao lado. Era como se fôssemos amigas.
Noite após noite, perambulando pelo jardim em torno da casa, íamos parar perto de um pessegueiro que, segundo a minha avó, havia sido plantado pela minha mãe ainda quando criança. Eu achava perfeito me sentar apoiando as costas no pessegueiro da minha mãe enquanto “conversava” com a amiga luminosa.
Tudo transcorria muito bem até chegar aquela notícia: o meu irmão vinha passar uns dias conosco. Meu irmão? Quem? Ah, o Narciso. É verdade, eu tinha um irmão com nome de flor. Ele não ia dormir comigo no meu quarto, né? Não? Que bom, pelo menos isso.
Quando ele chegou com o meu pai e a sua mulher de cabelo vermelho, senti antipatia à primeira vista. Enquanto os meus avós sorriam e diziam “Ah que gracinha! Oh que bonitinho!” eu pensava: “Que moleque feio! Sardento e de cabelo vermelho! E tem cara de bobo também.”
Os adultos passaram dois dias conosco e depois foram embora para a segunda lua de mel (fosse lá o que fosse tal coisa), deixando o moleque para os meus avós cuidarem. Ele já tinha quase seis anos, era bastante independente e muito malcriado. Quando eu me queixava com a minha avó, ela dizia para eu ter paciência, que faltavam só mais uns dias. Gostaria que ela me ensinasse como ter paciência com aquele sardento que ficava me seguindo por todo canto, fazendo caretas e mostrando a língua quando ninguém estava olhando.
Uma noite, quando todos já estavam dormindo, pulei a janela para me encontrar com a amiga luminosa. Não tinha me afastado nem cinco metros de casa quando, ao olhar pra trás, vi o moleque dentro do meu quarto, diante da janela, olhando admirado a bola de luz. Fiquei muito zangada. Voltei depressa e falei para ele sair dali e ir dormir. Ele só olhava a bola, espantado. Quando ela se aproximou, ele saiu correndo de medo.
Certamente ia contar para os meus avós no dia seguinte. Mas eu negaria e pronto, tudo resolvido. Quem acreditaria no pirralho?
Voltei ao passeio. Quando a situação estava novamente tranquila, apareceu de repente o moleque. Ele havia voltado, pulado a janela e nos seguido. Fiquei mais zangada ainda e ordenei que ele voltasse imediatamente. Em vez de voltar, ele se abaixou, pegou uma pedra e atirou. Não sei em quem ele pretendia acertar, só sei que atingiu a bola em cheio.
O que houve em seguida foi uma explosão silenciosa. A bola dividiu-se em milhares de faíscas, que de verde tornaram-se vermelhas. Eu gritei de susto e o moleque correu dali. Aqueles pontos luminosos foram se afastando uns dos outros, tornando-se uma nuvem cada vez mais rarefeita. Restou apenas o miolo: uma névoa esbranquiçada, disforme, quase transparente. A névoa dirigiu-se lentamente para o pessegueiro e eu a segui, com o coração em sobressalto. Chegando lá, foi descendo para o chão em direção às raízes. Pareceu mergulhar com suavidade no solo, e extinguiu-se por completo.
Sentei-me, encostando-me no tronco da árvore, e chorei. Minha amiga luminosa havia morrido. Tudo por causa daquele moleque malcriado. E agora? Fazer o quê?
Comecei a roçar a mão na grama bem no lugar onde a névoa tinha desaparecido, e senti uma pontinha dura. Ao olhar, vi algo que brilhava à luz da lua. Seria um fragmento solidificado da bola luminosa? Cavei devagarinho, com cuidado, e desenterrei um objeto que estava preso a uma correntinha. Era uma correntinha de ouro com um coraçãozinho.
No dia seguinte o meu irmão parecia um anjo, como se nada houvesse acontecido na noite anterior. Quando mostrei a correntinha à minha avó, ela ficou muito emocionada.
“Era da sua mãe! Ela ganhou de aniversário e nunca tirava do pescoço, mas perdeu quando tinha a sua idade, e nunca mais encontramos. Onde você achou, minha filha?”
Perdoei o meu irmão. Não fosse por ele, talvez nunca tivesse descoberto a joia. A “mãe-do-ouro” havia cumprido a sua missão. Agora a correntinha fica no meu pescoço. No coraçãozinho está escrito o nome da minha mãe. Já contei que o meu nome é igual ao dela?

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Exobacterjulian

          Quando o meu noivo me trocou por uma vagabunda desclassificada, a dor que passei a sentir chegava a ser física. Forte e profunda, quase insuportável, me obrigou a desenvolver estratégias de autopreservação. Durante o dia eu trabalhava obsessivamente. À noite criava imagens mentais que me confortassem.
          Minha profissão é técnica, o trabalho é complexo, exige grande concentração. O que acabou sendo conveniente, pois não sobrava neurônio desocupado para me fazer lembrar daquela pessoa absurda que, de um momento para o outro, me eliminou de sua vida como se eu fosse um objeto descartável.
          Analisando objetivamente, foi assim que conquistei o que tenho agora. Onde estaria se não tivesse trabalhado tanto ao longo daqueles meses? Certamente não teria recebido o convite para participar desta missão e estaria, talvez, sentada em um sofá, calçando chinelos macios, lendo o best seller do momento, sentindo o cheiro do chocolate quente na xícara de bordas douradas sobre a graciosa mesinha...
          Não, não! Foco na realidade! Foco na realidade! Sem chinelos, sem chocolate, sem livrinho romântico. Agora é a aridez vermelha, o oxigênio controlado, os equipamentos de proteção.
          Lá atrás, naquelas noites sem sonhos, a imagem que mais me aliviava o sofrimento era a fantasia de ser um micro-organismo em um muro em ruínas. Não um muro qualquer: esse ficava em um planeta de outra galáxia. Sem receber energia suficiente do seu velho sol, o planeta havia perdido as condições de vida. Sobreviviam apenas algumas bactérias, como eu. Minha espécie não precisava de energia solar, bastava a radiação de alguns elementos químicos. Esse muro estava lá há milhões de anos, construído por uma civilização extinta. Resto de um palácio, de uma fábrica, de um templo, sei lá.
          Só sei que aquele muro arruinado abrigava alguns organismos inertes, silenciosos, tranquilos. Aconchegados ao calor da radioatividade, não sentiam dor, não tinham necessidades nem desejos, nem anseios nem esperanças, nem mágoas nem frustrações. Talvez nem tivessem memória ou poder de raciocínio. Não sabiam quando tinham surgido, não imaginavam seu próprio fim.
          Eu era um desses micro-organismos. Nada ouvia, nada sentia, nada pensava.
          E assim conseguia dormir.
          Agora (quem poderia imaginar?!) aqui estou eu diante desse mesmo muro! Não na forma de bactéria mas na minha própria forma humana, contemplando o repositório das últimas criaturas vivas deste mundo agonizante.
          Será que existem realmente? Embora sem ter examinado ainda as pedras, eu sei que vou encontrá-las. Aqui é o mesmo lugar que fantasiei: o mesmo céu avermelhado, a mesma poeira fina, a mesma aurora boreal estranhamente amarela, a mesma luminosidade fantástica.
          Mesma, mesma, mesma... resma! lesma! quaresma! tesma!
          − Ei, não existe tesma!!! (disse eu atirando nele um pãozinho parcialmente comido)
          Brincadeira boba que o Juliano e eu fazíamos às vezes: encontrar palavras que rimassem. Ganhava quem se lembrava de mais palavras. No final, risadas e abracinhos.
          Trocada por uma vagabunda com cara de sonsa que se fez de amiguinha até o último momento. Sem explicações, sem um adeus, sem nada. Nem pediu de volta a aliança. Que joguei fora. Dentro estava escrito “Sempre seu, Juliano”.
          Sempre. O que é sempre? O que é para sempre? O que é eterno? Certo estava Einstein, o tempo é relativo. A eternidade é relativa.
          Tempo me lembra oxigênio. O recipiente de oxigênio pesa. Aqui a gravidade é quase igual à da Terra, mas um pouco maior, suficiente para se fazer sentir. O recipiente tem volume limitado. Então não posso desperdiçar tempo. Foco, menina! Foco! Não se perca em devaneios. Tempo é oxigênio, e oxigênio é vida. Vida é...?
          O que é vida? Meu trabalho em exobiologia? Se isso não for vida então estou mais morta-viva do que as bactérias do muro, porque tudo o que tenho é o meu trabalho. E as minhas lembranças.
          Mudei de país para fugir de você, Juliano. Deixei tudo para trás, suportei anos de treinamento intenso para esta missão. O que eu queria na verdade era me enfiar dentro de um Buraco de Minhoca (obrigada, Einstein!) e mudar de galáxia.
          Mentira que estou pesquisando vida alienígena! Mentira que estou interessada em altas descobertas científicas. É tudo pra ficar longe de você. Mas você sempre vem junto. Você está em todos os lugares. Você preenche todas as galáxias.
          Pronto, desperdicei mais alguns minutos preciosos. Saí sozinha apenas pra olhar essa aurora boreal amarela. Prova de que o planeta ainda tem núcleo ativo. Aí está a magnestosfera para protegê-lo. Muito fraca, porém. A incidência de raios cósmicos é grande. Estou em ambiente perigoso para a vida humana. Por que fui me afastar da base? Nem percebi o quanto me afastava. Todos aqueles anos de capacitação e agora quebro o procedimento mais elementar de segurança. Se me perder nem saberão onde me encontrar, porque deixei o anel localizador no alojamento. O que acontece comigo, a funcionária padrão do projeto?
          Se me perder nem saberão onde me encontrar. Se me deitar aqui, ao lado desse muro e ficar bem quieta... O oxigênio se esgotando lentamente... Meu sistema saturado de dióxido de carbono... vou ficar com sono, vou dormir...
          Que absurdo seria. Que absurdo seria ficar aqui deitada, contemplando com os olhos da mente o rosto do Juliano. Que está a milhões de anos-luz. Luz. Os olhos do Juliano. Escuros, grandes, tão expressivos.
          Foco! Foco! Qual o motivo dessa cor na aurora boreal? Sódio em suspensão na ionosfera? O solo é vermelho de ferrugem, como em Marte. Mas esse brilho amarelo no céu me lembra luz de sódio. Preciso perguntar a alguém quando voltar à base. Não posso demorar. Tanta aridez me deprime. Um planeta inteiro sem vida vegetal. Nenhuma árvore, nenhuma flor. Só as bactérias no muro, se é que existem.
          Um planeta sem flor deve morrer mesmo. Merece ser vaporizado por uma estrela em explosão. De que vale a vida sem flores? Por insignificantes que sejam, como aquelas violetas pequeninas que se abrem escondidas no meio da folhagem. É preciso ir lá, agachar no chão e afastar as folhas para achar as florezinhas. Violetinhas cor de violeta, perfumadinhas. Mas é preciso procurar e prestar atenção para ver a beleza e sentir o perfume.
          Exatamente como Juliano. No meio de uma multidão ele passa despercebido, uma pessoa completamente comum. Prestando atenção é que se vê como o seu rosto é harmonioso, parece ter sido desenhado por Michelangelo. Nunca vi nariz tão perfeito. Os lábios são lindos. Ficam mais lindos quando ele sorri. Não o sorriso banal das situações cotidianas, mas sim aquele sorriso espontâneo que vem antes de uma risada gostosa ou de uma insinuação marota. Aquele sorriso sempre me trouxe à mente a imagem de um lírio crescendo à beira de um riacho: alvo, puro, cheio de vida, cheio de frescor.
          Nada há de alvo, puro, cheio de vida e frescor aqui onde estou. Somente aridez. Óxido de ferro, sódio, radiação, perguntas sem respostas.
          Eu também sou uma estrela agonizante. Já brilhei mas agora estou me apagando. Meu coração é o planeta sem vida que a estrela já não aquece. E você, Juliano, é a bactéria que resiste nas reentrâncias das pedras, dentro deste coração. De onde vem a radioatividade que te alimenta?
          Meu desejo é deitar no chão, encostada no muro. Fechar os olhos e imaginar que estou à beira daquele riacho contornado pelos lírios-sorrisos. Sono. Nada.

* * * *

          Nunca se descobriu por que a doutora Juliana saiu sozinha da base usando no dedo, em vez do anel localizador, uma aliança de ouro. Nela estava escrito: “Sempre seu, Juliano”.
          O primeiro ser vivo genuinamente alienígena descoberto pela humanidade foi denominado, em sua homenagem, “Exobacterjulian radiophilus”.



* * * *
Imagem: http://jjcanvas.deviantart.com

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

"Terrarium"

Minha tribo vive dentro desta bolha há milhares de anos. Mas nem sempre foi assim.
Tudo começou quando uma epidemia manifestou-se nesta região do planeta.
Escrituras antigas dizem que éramos uma nação numerosa, em plena harmonia com a natureza.
Porém um dia a floresta engendrou um vírus mortal. Inúmeros nativos foram afetados, e todos os que se aproximaram tentando ajudar morreram também.
Depois de muitos estudos, o povo lá de fora concluiu que não havia salvação para nós.
Não podiam deixar o vírus disseminar-se até as regiões ainda sãs do planeta, e procuraram com urgência uma resposta.
A solução encontrada foi nos confinar dentro desta enorme bolha construída em torno da aldeia e sob o próprio solo: garantia de que ninguém conseguisse sair e de que o vírus não atingisse os lençóis freáticos.
Foi por receio de se aproximarem da parte infectada da floresta que desenharam e edificaram uma estrutura de tão grandes dimensões. A intenção de preservar o restante da humanidade os motivou a investir riquezas e esforços de muitos países. Isolar a floresta e seus habitantes o mais rapidamente possível, o mais completamente possível, essa era a única maneira.
Os nativos não reagiram devido à apatia da doença e também porque não sabiam ao certo o que estava acontecendo. Quando vieram a perceber, tudo estava pronto.
O povo lá de fora informou, através da comunicação por ondas magnéticas, que haviam construído um “terrarium”: ecossistema hermético com satisfatórias condições de subsistência para os seres nele encerrados. Não se recomendava tentar sair já que o material empregado – embora tivesse aparência de vidro comum – era composto por uma estrutura cristalina indestrutível.
Foi a única e derradeira comunicação que recebemos.
O tempo passou e alguns resistiram à doença, dando origem a descendentes imunes ao vírus. Nossa tribo voltou a se desenvolver. Nunca mais a floresta nos castigou. Aqui permanecemos e evoluímos. A redoma passou a ser vista como proteção, não mais como segregação. Tornamo-nos autossuficientes e tão felizes quanto seres humanos podem ser. Não fosse pela recente descoberta da situação do povo de fora, tudo continuaria perfeito.
A informação foi trazida por um grupo de pesquisadores que, durante uma caminhada, chegou até o limite da redoma. Raramente alguém vai até lá. Não há objetivo nenhum em contemplar um mundo que já não é nosso e que nunca voltará a ser. O que descobriram era – até então – inimaginável.
Toda a terra além da redoma está devastada e estéril. Não há mais quase nenhuma vida lá fora. Vegetação rara e debilitada, pequenos animais aparecendo rápida e esporadicamente, solo arenoso, luminosidade forte e áspera.
Após essa constatação, os pesquisadores decidiram verificar todo o contorno da redoma. Não suspeitavam que visões ainda mais chocantes iriam surgir. Em diversos pontos encontraram pessoas tentando entrar. Ao verem os pesquisadores, fizeram sinais desesperados implorando ajuda. Uma ajuda impossível de conceder.
Não raramente depararam-se com esqueletos jazendo encostados à redoma. Ferramentas e resíduos em torno deles testemunhavam que haviam tentado de tudo.
Deveras lastimável a situação. Parece que o Terrarium é o único lugar no planeta onde a vida continua existindo em sua normalidade.
Os pesquisadores fizeram reuniões para discutir o que poderia ser feito para ajudar os de fora. Não chegaram a nenhuma conclusão.
Eu sou um desses pesquisadores. Eu sei como abrir uma passagem para o mundo externo. Descobri há muitos anos, mas não disse nada a ninguém. Para que perturbar uma situação perfeita?
Vou permanecer em silêncio. Quem garante que os de fora, entrando na redoma, não trarão agentes infecciosos para os quais os nossos organismos não têm proteção? É muito perigoso.
Jamais direi uma palavra. É para o nosso bem.


sábado, 20 de setembro de 2014

Futebol de várzea

 Trecho do livro Os meninos da Rua Beto 

- - - Uma crônica dos anos setentas - - -

Antigamente a prática do futebol era mais acessível do que é hoje, porque em cada bairro havia pelo menos uns dois terrenos baldios com tamanho suficiente para abrigar o campo e a torcida.

Os clubes eram bem organizados e contavam com vários times: Dente de Leite, Juvenil, dos Veteranos, e os dois principais: o Primeiro Quadro, que era o titular, e o Segundo Quadro, composto pelos aspirantes e reservas. Nos domingos de manhã havia jogo entre os Dentes de Leite, depois os outros, culminando pelos principais.

Durante os campeonatos as partidas se distribuíam por vários bairros. Não eram numerosos os campos que dispunham de arquibancadas, mas a torcida não se importava se às vezes precisava assistir em pé ou sentada num barranco (ou mesmo sobre galhos de árvores).

Essa mania de futebol irritava as esposas, porque todo domingo de manhã os maridos saíam levando consigo os "filhos homens", dizendo que voltavam para o almoço, mas só apareciam lá pelas três ou quatro horas da tarde.

É que depois da vitória vinha a comemoração! E se o time não tivesse vencido era preciso desabafar as mágoas, espairecer com os amigos... Por um motivo ou por outro sempre acabavam indo para o bar em vez de voltarem para casa, preferindo tomar cerveja, comer linguiça frita e ovo cozido de casca amarela em lugar do caprichado macarrão com molho de tomate, polvilhado de queijo duro ralado.

Numa das tais manhãs de domingo estava se realizando um amistoso lá na Vila Formosa, periferia da Zona Leste de São Paulo. De repente, por alguma razão, os jogadores se desentenderam e começou uma briga feia entre os dois times.

Não se sabe se foi alguém que chamou a polícia ou se esta vinha passando e viu a desordem. O fato é que os policiais separaram a briga, apreenderam uma amostra dos que estavam batendo e uma amostra dos que estavam apanhando, e mandaram que entrassem na viatura, uma perua Veraneio pintada de preto e branco.

Como o bate-boca não parasse, resolveram levar os dois times completos para a delegacia, e pediram reforços. Chegaram outras "barcas" e todo mundo foi devidamente acomodado.

Estavam naquele vai-não-vai quando chega ao campinho o pai de um dos goleiros e vê o filho em uma das viaturas, no meio daquele monte de gente.

--- Ó Zezinho, que estás a fazer aí? Já pra casa que a comida está na mesa!

Como o filho não obedecesse, o homem foi ficando cada vez mais irritado.

--- Não obedeces teu pai, ó menino? Já pra casa que o almoço está a esfriar. Tua mãe vai se abespinhar com a tua demora!

O Zezinho bem que tentou explicar a situação ao pai, mas este se recusava a aceitar os fatos. Depois de brigar muito com o filho, resolveu tirar satisfação com os guardas. E tanto falou, e tanto discutiu, que eles não suportaram mais e resolveram soltar o Zezinho só para ficarem livres daquela criatura impossível.

Aí o pessoal que estava na mesma viatura não se conformou. Se ele podia ser solto por que os demais não podiam também? Que diferença de tratamento era aquela? Por acaso eles também não precisavam almoçar?

Protestaram, argumentaram, atazanaram, até que os policiais resolveram soltá-los.

Uma onda de revolta atingiu os outros detidos! Então havia desigualdade entre as viaturas? Que injustiça absurda! Os direitos não eram iguais? Ou todo mundo ou ninguém! Ora, onde é que já se viu?

Mais bate-boca, mais protestos, até que a polícia não aguentou mais. Abriu todas as portas e mandou que fossem embora. 

Acabou-se o jogo, acabou-se a briga, acabou-se a detenção. 

Todo mundo (até a polícia) foi pra casa almoçar.  

sábado, 13 de setembro de 2014

Palácio de cristal

Ah, que bom que você parou aqui para conversar! É verdade que recebo muitas visitas, mas são tão rápidas! Mal dá tempo de dizer “olá, como vai?” Raramente alguém chega, senta, e se interessa em saber alguma coisa sobre mim. Então vou te contar tudo direitinho.
Foi assim: eu era uma pessoa como outra qualquer, morava em uma casa, tinha uma família, e trabalhava muito.
O problema era que, por mais que eu me dedicasse, por mais que me esforçasse, nunca parecia ser suficiente.
Engraçado que eu não percebia isso. Tinha a impressão de que a vida era aquilo mesmo: muito trabalho e uma constante sensação não estar cumprindo as expectativas. Sempre havia alguma coisa que alguém queria, que alguém precisava, e eu falhava em satisfazer. Depois me culpava e tentava fazer um esforço maior ainda.
Acho que vivi assim muitos anos. Nem sei quantos, mas foram muitos. Essa insatisfação, esse sentimento de culpa, que sempre me incomodaram, começaram a ficar insuportáveis.
Sabe que de tanto trabalhar fiquei com problema de dor nas costas, nos braços e nas pernas? E dor de cabeça, então? E insônia?
Além de tudo eu não tinha tempo para me tratar. Comecei a ficar cada vez mais feia. Não ia ao médico e nem cuidava da aparência. Me olhava no espelho e me achava horrorosa, mas tinha tanta coisa pra fazer que deixava pra depois arrumar o cabelo, dar um jeito nas unhas ou comprar uma roupa nova.
E as cobranças aumentando cada vez mais. Cobranças, reclamações, recriminações. Nunca um “obrigado”. Nunca um “deixe isso pra depois, vá descansar um pouco”. Nunca um “vou te ajudar a fazer isso”. Nunca um “parabéns, ficou muito bom”.
Então um dia olhei pela janela e vi aquele palácio de cristal. Engraçado que nunca tinha visto antes, embora tenha olhado naquela direção tantas e tantas vezes. Nessa hora pensei: “é para lá que eu vou! e vai ser agora!”
Por isso construí este barquinho, todo acolchoado por dentro, bem confortável. Plantei essas flores todas para ele ficar bonito e perfumado.
Levei o barquinho para o rio, entrei dentro, e desde então estou viajando na direção do palácio.
É tão bom ficar aqui deitada, sem fazer nada, só descansando. O barquinho vai navegando sozinho, porque o rio se encarrega de levá-lo. Assim, sem pressa, sem turbulência. Enquanto isso eu fico olhando o céu azul, respirando o ar puro, vendo as borboletas chegarem para pousar nas flores. São tão bonitas as margens deste rio, tão coloridas, que às vezes dá vontade de desembarcar e ficar morando aqui mesmo.
Mas o meu destino é o palácio de cristal. Há um quarto lindo esperando por mim, onde vou poder ser feliz. Muitos livros para ler, um espelho bem grande com moldura de prata, uma cama maravilhosa com colunas nos quatro quantos. Já pensou que beleza? Ninguém me amolando, me cobrando, me recriminando.
Este rio tem muitas voltas, por isso a viagem é longa. Mas eu não me importo, porque sou feliz desde já, desde que entrei no barquinho e deixei tudo para trás.
O que foi, passarinho? Precisa voar agora? Está bem, mas volte outras vezes, se puder. Vá me visitar lá no palácio. A minha janela é aquela que dá pra ver daqui. Está vendo? Aquela dourada, com cortinas de renda branca.
Tchau, passarinho! Seja feliz!

Imagem: http://crosti.ru

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O último vôo do passarinho

Foi depois de uma chuva forte que os irmãozinhos - uma menina e um menino - encontraram no jardim um passarinho caído no chão.
Se as próprias plantas se mostravam maltratadas por aquela tempestade cheia de ventos e de raios, o que dizer daquele ser pequenino e tão vulnerável?
As crianças o recolheram e o colocaram em um ninho improvisado feito com paninhos limpos e macios.Tentaram dar-lhe comida e água, sem muito sucesso.
A mãe disse: “Não se preocupem que a própria natureza vai cuidar dele. Esses bichinhos são muito fortes. Logo ele vai estar bom de novo.”
Porém no dia seguinte ele ainda estava mal. As asinhas não pareciam estar quebradas e não havia ferimentos visíveis, mas ele não dava mostras de que ia se levantar.
Continuaram tentando alimentá-lo, mas ele pouco bebeu e comeu. Dava muita pena o seu estado.
Era domingo, dia de missa. O menino não queria saber desses negócios de religião, mas a menina era bastante devota de Nossa Senhora. Então naquele dia ela foi à missa e rezou pela recuperação do doentinho.
Pediu para que ele melhorasse logo e ficasse completamente bom; ou então que morresse rapidamente, porque o pior era o sofrimento pelo qual estava passando aquele bichinho inocente.
Ao voltar para casa imaginava encontrar o passarinho cantando, já pronto pra voar. Caso tivesse morrido, iria fazer uma cova no jardim para se lembrar dele para sempre, com muito carinho.Talvez pusesse uma pequena cruz e plantasse uma flor sobre o local.
Cheia de esperanças, chegou e perguntou se ele tinha melhorado. O irmão respondeu, sem nenhuma emoção, que - muito pelo contrário - tinha morrido.
A menina sentiu um soco no coração. Nesse caso era preciso fazer o enterro.
Perguntou:
“Onde vocês colocaram o corpinho?”
“Jogamos na enxurrada.”
Que pena. Que falta de sensibilidade. Nem um enterro decente o coitadinho teve. E não adiantava reclamar. Os meninos não sentem as coisas como as meninas.
Mas, no final, Nossa Senhora havia atendido ao pedido, e ele não sofria mais. Tinha voado para o céu dos passarinhos.
Imagem: http://www.123rf.com

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O Homem Dourado

Éramos apenas um bando de errantes. Mulheres, crianças e idosos andando devagar sob o sol. 
Precisávamos de outro lugar para viver, precisávamos nos integrar a uma nova comunidade ou então reconstruir a nossa, porém longe daquela devastação. Sem saber aonde ir, tomamos aquele caminho e seguimos em frente. Sempre em frente, afastando-nos da aldeia destruída pela guerra. Não que tivesse sido atacada pelos inimigos, mas a partida sem retorno de todos os homens aptos para a luta levou o nosso pequeno mundo à completa deterioração. Os animais morreram, as plantações secaram. Tudo se tornou árido e estéril. 

Naquele dia da nossa partida o céu estava muito azul e as cigarras cantavam. 
O verde do mato, o cheiro morno da terra... Uma sensação morna também na alma, como se alguma coisa importante estivesse para acontecer. 
A desesperança parecia ter ficado lá atrás, junto às nossas choupanas em ruínas, infestadas de insetos e ratos. 
Só importava agora o que estava por vir. 

Continuamos por toda a tarde. Silenciosos, vagarosos, mas serenos. 
A noite ainda não havia chegado quando avistamos à frente, do lado esquerdo do caminho, uma pequena ponte de pedra. Não havia rio nem riacho sob ela, apenas a depressão deixada pelo curso d'água que não mais existia. 
Porém a nossa atenção foi desviada para algo extraordinário do outro lado da ponte. Uma cabana de cânhamo e palha, de tamanho amplo e aparência acolhedora. 
Ao seu lado, sentado sobre uma pilha de pedras, um homem completamente dourado. 
Mesmo à distância dava para ver que se tratava de um ser muito belo, como uma estátua primorosamente esculpida em ouro. Mas não era estátua, porque se movia e nos observava silenciosamente. 

Paramos todos, admirados demais para entender o que víamos. 
Finalmente alguém disse que a cabana seria um lugar propício para passarmos a noite. 
Sim, mas precisaríamos da permissão do homem dourado. 
Quem seria ele? Uma divindade, sem dúvida. 
Poderíamos nos aproximar e pedir? Seria apropriado? Seria perigoso? 

Não havendo outra escolha, resolvemos seguir em frente e atravessar a ponte. Éramos tão poucos, tão inofensivos! Ele não veria ameaça nessa aproximação. 
Recomeçamos a andar, mais vagarosamente do que antes. Atravessamos a ponte, paramos em frente ao monte de pedras e ficamos em silêncio, olhando para o chão. 
Desrespeitoso seria olhá-lo diretamente, e mais grave ainda tomar a iniciativa da conversa. 
Os nossos corações batiam forte de medo e de esperança. As crianças, embora não entendessem a situação, sentiram que era preciso ficar muito quietas. 

Não esperamos muito tempo. Ele logo se levantou ─ era alto, perfeito, a materialização da beleza ─ e veio em nossa direção. 
Falou com uma voz muito humana que éramos bem-vindos, ouviu a nossa história e o nosso pedido, e nos deixou entrar na cabana. 
Por dentro era ainda mais acolhedora do que pensáramos. Muito limpo, o chão era revestido por esteiras de palha onde se podia deitar confortavelmente para passar a noite. 
Ninguém ousou perguntar quem era o homem dourado. 
Ninguém ousou suspeitar que a cabana fosse um tipo de chamariz, uma armadilha para algo incerto. 
Ninguém ousou tocar no homem dourado. A não ser uma criança, que inocentemente deslizou o dedo sobre a sua pele para ver se a cor de ouro saía. 
Nem todos viram isso acontecer, mas quem viu teve um momento de horror diante da possível fúria da divindade ultrajada. Eu sei porque vi, e tenho certeza de que o meu sangue parou de circular naquele momento. 

Não houve fúria, mas sim um sorriso. A cor de ouro não ficou no dedinho da criança, que, incentivada pelo sorriso, retribuiu com uma risadinha breve e musical. 
A primeira risada que ouvíamos desde muito, muito tempo. 

As outras crianças se apressaram em imitar o gesto, e riam felizes com a brincadeira. 
Para meu espanto, os adultos do grupo começaram a tomar a mesma iniciativa. 
Não sei explicar de onde os meus companheiros, normalmente reservados, tiraram coragem para tão insano atrevimento. 
A cada vez, o homem dourado sorria e aparentemente se divertia com a admiração que causava. 

Então resolvi me aproximar e fazer o mesmo. Apesar do sobressalto enorme dentro do peito, não quis agir diferentemente dos outros. O que viesse depois, fosse para o bem ou fosse para o mal, era melhor que acontecesse a todos sem exceção. 
Isso foi a explicação dada pela mente, mas o coração sabia que a motivação era outra. 
Fui a última a estender a mão, mas ele imediatamente se afastou e disse: "Você não. Você não pode me tocar." 

É impossível descrever a tristeza que senti naquele momento. Mais do que uma surpresa, mais do que a mágoa da rejeição, era uma tristeza muito profunda que me fez chorar amargamente. Jamais tinha me sentido assim. Não sabia, até aquele momento, que poderia haver no mundo uma tristeza tão profunda. 
Enquanto as pessoas começaram a se ajeitar para passar a noite, eu, parada em um canto, vi quando o homem dourado se afastou da cabana. 
Tudo era tão incompreensível... sem pensar no que fazia, fui atrás. 
Ele se deitou no chão, colocando um dos braços sobre a testa. Ao me ver fez sinal para que me aproximasse. 
Quando cheguei perto ele estendeu a mão e disse: "Agora você pode me tocar." 

Sentei-me ao seu lado e o abracei. Abracei muito, muito. Ele se deixava abraçar, e parecia estar ficando cansado, cada vez mais cansado. Em dado momento abriu as pálpebras pesadas, me contemplou com seus olhos cor de ouro e disse: "Entende agora por que você não podia me tocar? É que você me ama, por isso se me tocar eu morro." 
E eu o abraçava mais e mais, e ele morria. 

No dia seguinte ninguém mais viu o Homem Dourado. Havia desaparecido. Mas um novo ânimo parecia habitar todos os corações. Retomamos a jornada, encontramos o local que desejávamos, reconstruímos as nossas vidas. 
Quando nasceu o meu filho, seus cabelos loiros reforçaram a suspeita que já existia. 
Suspeita transformada em certeza assim que ele abriu os seus olhos cor de ouro e iluminou para sempre as nossas existências.
Imagem: http://paintthemoon.net

sábado, 6 de setembro de 2014

Como se escreve um best seller?

Então um dia fui a um evento literário. Palestras com temas interessantes: uma sobre microcontos, outra sobre mercado literário, outra sobre criação, etc.
Durou o dia todo. Palestrantes muito carismáticos que pareciam entender do que falavam.
Um deles se sobressaiu pela fluência e simpatia; jovem autor de sucesso que, generosamente, expôs toda a sua trajetória dando informações e dicas.
O evento encerrou-se com uma feira de livros. Comprei vários, incluindo o volume 1 da saga sobre anjos escrita pelo palestrante simpático.
Comecei a ler no metrô, mas a viagem foi curta demais e o ambiente não favorecia a concentração, por isso achei o início da história um pouco desinteressante. Em casa havia melhores condições para apreciar a obra.
Já em casa, reinicio a leitura.
“Ele era um jovem muito bonito. Tinha longos cabelos loiros e olhos tão azuis que lembravam um céu sem nuvens. Alto e forte, de pele rosada e dentes alvos como pérolas. Sua esposa também era linda. Possuía cabelos castanhos e encaracolados, sua pele era morena, suave como uma seda, e os seus olhos eram verdes e brilhantes.
Naquela manhã ele se levantou, preparou o café e chamou a esposa, que estava tomando banho:
- Venha, meu amor. Hoje preparei as panquecas que você tanto gosta.
Ela saiu do banho ainda enrolada na macia toalha cor-de-rosa decorada com lindas flores vermelhas. Estava adorável com os cabelos envoltos por uma toalha azul, como se fosse um turbante, pois tinha acabado de lavar os cabelos com um xampu muito cheiroso. “
- Ah, meu querido! disse ela. O que seria de mim se não eu não tivesse você?
Mal sabia a bela jovem que aquele seria o último dia de vida do seu amado esposo.”

Para tudo! Para tudo!
Está certo que o autor é uma graça de pessoa, mas é assim que começa o seu best seller?
Avanço mais algumas páginas. Quem sabe melhora lá na frente.
Ele não podia se conformar com aquela situação. Outros, em seu lugar, estariam felizes por terem sido alçados ao paraíso, aquele lugar divino que todos almejam e sonham em conquistar pelas suas boas ações. Mas não ele, que pensava somente em sua linda esposa, agora uma viúva inconsolável que não cessava de derramar mornas e cristalinas lágrimas de pesar e de saudade.
- Jamais desistirei de voltar aos braços daquela a quem tanto amo! bradava ele à fresca brisa que soprava suavemente à beira daquele lago tranquilo, colorido pelas luzes de um maravilhoso arco-íris, na colônia celeste para onde fôra enviado.

Parei nesse ponto. Nunca terminei a leitura. Doei o livro. Jamais saberei como se escreve um best seller.

Imagens:
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Interessante artigo sobre o assunto "best-seller"
escrito por Paulo Rónai, pode ser lido aqui.





sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Vendendo poesia

Lá estava eu num ponto de ônibus cheio de gente, vendendo os meus livros de poesia.
Escrevi três até hoje. O primeiro foi à mão. Mandei xerocar e eu mesmo grampeei as folhas.
O segundo bati à máquina lá no serviço. Depois xeroquei e grampeei.
Este terceiro levei para uma gráfica. Ficou muito bom o acabamento.
Sou um rapaz pardo. Sofro preconceito porque as pessoas não acreditam que preto também escreve poesia.
Preto pode fazer música, mas fazer poesia não faz. É isso o que a maioria acha.
Então eu estava lá oferecendo os livros para o pessoal que esperava os ônibus. Passam diversos naquele ponto, cada um pra um lugar, por isso não tem fila, só um aglomerado de gente.
Vai daí ofereci os livros para uma moça que parecia preocupada. O ônibus dela estava demorando demais, deu pra perceber.
Ela respondeu: “Não, obrigada.”
Eu insisti: “Mas por que não quer? Não gosta de poesia?”
Ela nem olhava pra mim, ficava prestando atenção pra ver se o ônibus estava chegando. Falou: “Pra dizer a verdade não gosto de poesia não.”
Mas eu estava decidido a vender alguma coisa pra ela, então apelei:
“Já sei por que você não quer comprar. É porque eu sou negro.”
Ela se sensibilizou. Não queria que eu pensasse que ela era racista. Respondeu: “Não tem nada a ver, é que não gosto de poesia mesmo, mas tudo bem, vou levar um livro seu.”
Me deu a impressão de que ela estava só querendo se livrar da amolação. Dei o livro, ela pagou, e nesse instante o ônibus dela chegou.
Na pressa de embarcar, e não tendo como ajeitar o livro no meio das coisas que carregava, ela o empurrou de volta para a minha mão e foi embora.
Ela não gostava mesmo de poesia. E acabou que me deu uma esmola para eu calar a boca.
Não gostei de ganhar esmola.

Imagens:
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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Pequeno incidente no Sistema Solar

A estrela Sol levava um papo com o seu vizinho mais próximo, o planeta Mercúrio.
“Poxa, cara, hoje eu estou mal.”
“O que você está sentindo, Sol?”
“Uma queimação danada.”
“Deve ter sido alguma coisa que você comeu.”
“Acho que você está certo. Isso começou depois que engoli um satélite.”
“E desde quando satélite dá azia?”
“Esse era um satélite artificial construído por aqueles microbiosinhos tecnológicos do planeta Terra. Eles colocaram dentro um reatorzinho nuclear recheado de urânio com cobertura de chumbo. Sou alérgico a esses dois elementos químicos. Se pelo menos passasse por aqui algum cometa bem gelado, rico em água no estado sólido... ”
“Chi... então complicou, porque não estou vendo nenhum cometa se aproximando."
Coitado do Sol. Estava mal mesmo, com cara de que ia vomitar. Suas erupções estavam aumentando visivelmente. O planeta Mercúrio não gostou nada da ideia de ser inundado por um jato de radiação eletromagnética misturado com um monte de partículas atômicas.
“Vira pra lá, Sol! Já chega eu ter de viver nessa temperatura infernal. Mais radiação ainda não vai me fazer bem nenhum.”
O Sol, daquele tamanhão, não conseguia se virar, coitado. Mas tentou dirigir o jato pra longe de Mercúrio.
E atingiu em cheio o planeta Terra!!!
Depois desse vômito estelar ele começou a sentir bem de novo. E gritou para o planeta Terra:
“Desculpa aí, Terra! Foi sem querer! Acho que acidentalmente eliminei aquela raça de microbiosinhos tecnológicos que infestava a sua superfície.”
O planeta Terra gritou de volta:
“Tudo bem, Sol. Não se preocupe não, porque aquilo é uma praga. Deve haver milhares ainda, alojados dentro das cavernas, no fundo do mar, e em lugares que nem ouso imaginar. Logo logo vai estar tudo contaminado outra vez. Pelo menos você me livrou temporariamente daquela terrível coceira.”
Estando felizes e aliviados a estrela Sol e os planetas Mercúrio e Terra, tudo voltou ao normal no Sistema Solar.

Imagem: http://thelandofenglish.blogspot.com.br

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Amanda e sua mãe

           Amanda morreu não pela doença, mas porque não precisava viver. Não tinha nada o que fazer neste mundo. Senti isso, de alguma forma, desde que ela nasceu.
           Jamais sorria, só olhava. Com aqueles olhos grandes e cinzentos que pareciam penetrar tudo.
           Aprendeu tarde a falar. Na verdade, nem sei quando aprendeu. Um dia, com quase dois anos, simplesmente falou. Alguém lhe fez uma pergunta esperando ouvir aquela pronúncia engraçada das crianças, mas ela respondeu perfeitamente, articulando bem as palavras e o raciocínio.
           Quase caí pra trás. Quem lhe ensinou? Eu, com certeza, não fui. Pai não tinha para lhe ensinar nada. Então como? Só posso imaginar que foi pela observação, prestando atenção nas conversas.
           Isso aumentou um pouco a sensação de desconforto que me causava. Eu sentia que ela me observava e analisava, que sabia quando eu estava mentindo. Mesmo naquela idade, quase um bebê.
           Nunca me chamou de mãe. Sempre que precisava falar comigo, me chamava pelo nome. Nunca perguntou pelo pai. Nunca me pediu nada. Só vivia. E observava. Era assustador.
           Quando foi para a escola, as professoras diziam que ela era quieta e não fazia perguntas. Em compensação, entendia tudo, o que ficava demonstrado pela perfeição dos trabalhos e das lições. Que aliás nunca ajudei a fazer. Nunca me pediu, nunca me ofereci. Se tivesse pedido alguma vez, eu teria ajudado, mas parecia não precisar de nada, então deixei de lado essa preocupação.
           Engraçado é que na escola ela era querida pelos colegas. Interagia bem, brincava e ensinava as coisas que os outros achavam difícil, como aritmética. Quando me contaram, nem acreditei. Amanda brincando e conversando com as outras crianças? Nem dava pra imaginar.
           Então ficou doente. Ninguém lhe falou da gravidade da doença, mas ela sabia. Porque sabia tudo. Já nasceu sabendo tudo.
           Era horrível ficar perto dela nessa época porque ela me observava com os grandes olhos cinzentos e me analisava e obviamente já tinha adivinhado que a sua futura ausência seria um alívio para mim. É terrível dizer isso, mas era verdade.
           Horas antes da sua morte, quem fez uma adivinhação fui eu. Ou assim pensei.
           Pelo jeito que me olhava achei que ia me fazer uma pergunta. Que ia perguntar pelo pai. Fiquei nervosa, não queria falar do pai dela, nem mesmo naquele momento extremo.
           Então me chamou:
           “Alzira.”
           Me preparei para a pergunta.
           “Onde está a minha mãe?”
Imagem: http://sigulu.blog.uol.com.br

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Tesouro

Aquele menino adorava coisas brilhantes e reluzentes. Juntava caquinhos de vidro, continhas perdidas de colar, fragmentos de correntinhas quebradas e tudo o mais que se parecesse com pedras e metais preciosos.
Já que não tinha um baú de pirata e nenhuma caixa de madeira, colocava tudo dentro de uma lata vazia de leite em pó, bem tampadinha.
Uma noite, na hora de dormir, contou à avó que havia brincado de pirata e enterrado o seu tesouro perto da goiabeira, lá no fundo do quintal.
Sua avó coçou o queixo, muito pensativa. E perguntou:
“Por acaso tem alguma moeda nesse tesouro?”
“Tem sim, vó. Aquelas duas moedinhas que ganhei do padrinho.”
Ela pareceu preocupada.
“Olha, meu filho, não presta enterrar dinheiro, viu? Se a pessoa morrer, ela tem que voltar lá da outra vida pra pedir a alguém que desenterre, senão sua alma nunca vai ter descanso.”
O menino arregalou o olho, assustado. Jogou pra longe as cobertas e correu, descalço mesmo, pra desenterrar a sua latinha. Logo ele, que tinha medo de escuridão. Mas nessa hora não pensou nas assombrações nem nos bichos nem em nada. Sequer lembrou-se de levar a sua pazinha. Passou por debaixo da parreira de chuchu, pisou sem dó no canteiro de cebolinha, chegou perto da goiabeira e cavou com as mãos, bem depressa. Ainda bem que o buraco era raso e a terra ainda estava fofa.
Voltou pra dentro com a latinha; o pijama sujo de terra, os pés e as mãos em triste estado.
“Menino, que desespero foi esse? Não precisava tanta pressa pra desenterrar!”
“Precisava sim, vó. No catecismo ensinaram que a gente tem que rezar de noite porque se morrer dormindo a alma vai pro céu. Quer dizer que a gente pode ir dormir vivo e acordar morto. Então imagina se eu morresse dormindo com o tesouro enterrado! Ia ter que voltar e pedir pra senhora desenterrar.”
“Então eu desenterrava, ué! Você pensou que eu ia ficar com medo do seu fantasma? Não ia não!”
“Eu sei, vó. Mas o perigo é que se eu voltasse pra cá, podia não achar o caminho de volta para o céu. Já pensou eu virar alma penada? Cruz credo!”
“Eita menino inteligente!”, conjecturou a avó, toda orgulhosa. “Pensa em tudo! Esse quando crescer vai ser doutor.”

Imagem: http://embracinglife-rose.blogspot.com.br