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"OS MENINOS DA RUA BETO"

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quarta-feira, 22 de maio de 2019

Velhos deuses

Juntos estamos como há muito temos estado. Só nós dois.
Eu, deus.
Ele, meu derradeiro crente.
Ninguém mais.
Tanto tempo, tanto tempo, que as bordas se desvaneceram.
É ele aqui comigo onde habitam os deuses, entre as nuvens que vagam sobre os picos mais altos?
Ou sou eu lá com ele onde habitam os humanos, em meio aos charcos sombrios?
É dele a cabeça exausta que se apoia nos meus joelhos? Ou é nos joelhos dele que eu me inclino e desfaleço?
Não há mais diferença. Tudo se tornou indistinto. Como as montanhas distantes fundindo-se no azul do céu.
Ele tem me sustentado e eu a ele.
O último do seu povo. Todos os outros, mortos. Ele único. Ele e eu: sozinhos.
Não fosse por mim já teria morrido também. Liguei o fio de prata da sua vida às energias celestes. Etéreo cordão umbilical.
Muita energia escorreu por esse fio, energia vinda do nada. Passou por ele, retornou ao nada.
Pouco resta para ele próprio tornar-se nada.
Junto com ele, eu.
Que há de mais aterrorizante do que a não existência?
Esse terror agora nos domina.
Suportamos ao máximo. Estamos esgarçados.
Eu não existo sem ele, ele não existe sem mim. Mas nenhum de nós é eterno.
Nestes últimos instantes a razão não me basta. O que eu sei não me consola. A convivência me tornou humano. Tenho emoções. Sofro.
Eu não queria morrer. Não queria fazer você morrer. Porque quando eu me for, você irá comigo. Ao nada. Ao não ser. Ao nunca ter sido.
Mesmo assim, embora seja inútil insistir, reafirmo que te adorei. Que te glorificava a cada manhã. Que te agradecia pelos raios de sol, pelas gotas de chuva e pelas estrelas.
Porque sem você nada haveria neste mundo. Nada nem ninguém nem prazer nem dor e ainda na dor eu te agradecia. Por continuar vivo.
Agora não tenho mais dor, só tristeza. No fim de tudo, valeu a pena?
Ah, a dúvida. Por que agora a dúvida? Toda uma vida de crença e adoração.
Quem fez as leis a que obedeci? E se não as tivesse obedecido?
Meu entendimento se esvai. Minha mente se confunde. O sentido de tudo se desorganiza.
Sinto-me débil. Ele não pode me ajudar porque minha debilidade o contamina.
Perder tudo é a maior das dores. Ao menos a crença ― ou a ilusão da crença ― poderia restar.
A morte com dignidade: a morte com a certeza de que tudo valeu a pena.
Por que, deus, me negas esse último consolo?
Enxergo com os olhos dele. Seus olhos buscam as estrelas, âncoras da eternidade. Quer se unir a elas e permanecer.
É inútil. O fio de prata tornou-se névoa, dissipou-se no espaço.
Descansemos, meu criador, minha criação.
As estrelas estão se apagando. Quem se apaga? Elas ou nós?
Elas em nós.
Mergulhemos na escuridão. Unidos como sempre estivemos.
E não tenha medo, porque sempre fomos um único. E com Ele continuaremos a ser.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Lá, naquele lugar


Eu me sentia tão bem naquele lugar. Lá eu era quem realmente sou. Nada mais, nada menos. Apenas eu.
Enquanto vivia aqui, sempre fui o que queriam que eu fosse; sempre fiz o que queriam que eu fizesse.
Todos ficavam satisfeitos, me aprovavam e sorriam. Todos viviam contentes, menos eu.
Lá não. Lá eu era diferente. Não pensava em ninguém. Nem sequer me lembrava dos outros. Estava muito ocupado comigo mesmo. Sendo feliz pela primeira vez.
Me sentia aliviado, essa é verdade.
Agora que voltei, voltei diferente.  Consigo ver com clareza: sempre carreguei um peso nas costas. Era difícil, mas eu me esforçava. Até que não consegui mais.
Por isso fui para lá.
A vida inteira desejei duas coisas: um jardim e uma horta. 
Conversa de maluco, diziam meus pais. Você tem que estudar, não pode perder tempo chafurdando na terra. Essas coisas a gente compra na feira e na quitanda. Vai estudar, menino, larga de inventar histórias.
Estudei, me formei. Agora vou ter um jardim e uma horta, pensava. Jardim? Horta? Minha noiva estranhava. Um dia quem sabe, depois da aposentadoria. Agora temos outras prioridades.
Montamos casa, criamos nossa filha, me aposentei.
Jardim, pai? Horta? Pra quê? Com essa idade, fazer serviço pesado com pá e enxada? Tomar friagem? Melhor não. Olha a saúde.
Pois fiquem sabendo que lá, naquele lugar, eu tinha tudo isso. E ninguém para me criticar.
Plantei um jardim na frente da casa e uma horta nos fundos. Sim, porque eu tinha uma casa. Estão pensando o quê? Que eu vivia ao relento? Não senhor.
Era uma casinha pequena, simples, e eu nunca me senti tão confortável.
Plantei margaridas, rosas, gerânios e dálias.
E todas floriram em pouco tempo! Um colorido maravilhoso. As borboletas, abelhas e pássaros aprovaram o meu jardim. Coisa linda de se ver como o ar se enchia de asas e sons.
Ainda não contei sobre o meu amigo, o Francisco de Paula. Ele morava mora ainda na casa mais perto da minha. Não há muitas habitações por lá, mas o suficiente para a gente não se sentir só. Às tardes nos sentávamos na varanda e ficávamos observando as borboletas, abelhas e beija-flores. Bichinhos abençoados.
Francisco gostava do meu café. Ninguém da minha família gostava. Muito fraco, diziam. Pois o Francisco achava melhor assim, fraco e com bastante açúcar.
Me ajudou a plantar a horta. Eu não sabia bem o que era melhor plantar, então ele me trouxe sementes e mudas. Ervilha, cenoura,  tomate, espinafre e alface. E também ervas: manjericão, alecrim e orégano. Horta pequena, mas muito viçosa. A última coisa que plantei foi berinjela, e já estava quase ficando boa de colher quando voltei pra cá.
Não me conformo. Abandonei tudo aquilo pra quê?
Um dia acordei e não sei por que motivo comecei a pensar na família. Minha mulher, minha filha, genro e netos. Durante todo o tempo que fiquei lá nunca pensei neles, mas naquele dia me levantei preocupado.
Francisco me disse: se você acha que deve voltar, volte. Siga o seu coração.
No final das contas acabei seguindo o meu sentimento de culpa. Estava feliz longe deles. Não me preocupava a respeito de como se sentiam com a minha ausência. Sofriam? Eram indiferentes? Estariam satisfeitos? Pouco me interessava. Que pessoa egoísta eu era. Tinha que me penitenciar. Tinha que voltar e fingir que me importava.
Agora estou novamente entre eles, e mais infeliz do que nunca.
Todos em redor da minha cama.
A esposa, de olhar cansado, mal contendo a vontade de se lamentar. Não está propriamente feliz com o meu retorno. Seu pensamento é: quando ficarei livre de todo esse incômodo?
A filha preocupada, mas não muito. Sinto-a mais focada em sua própria vida, nos problemas com o marido e os filhos. Entendo. É natural que seja assim.
O genro irritado com a perda de tempo. Tantas tarefas urgentes e ele ali fazendo de conta.
Netos impacientes. Gostamos do vô, mas gostamos mais de fazer as nossas coisas.
Será que voltei com o poder de ler pensamentos? Ou voltei senil, paranoico?
Noite passada conversei em sonho com o Francisco de Paula.
Ele disse: você pode vir pra cá quando quiser, meu amigo, mas dessa vez vai ser definitivo. Não é permitido ficar viajando de um lugar para o outro assim, toda hora.
Preciso decidir. O que me faz mais feliz: minha família ou minha horta?
Tenho pensado muito naquelas berinjelas...