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domingo, 21 de março de 2021

Visita à velha senhora

Minha bisavó tem cento e um anos. Ontem fui visitá-la. Como sempre, não me reconheceu. Mas sorriu e estendeu a mão. Sentei-me à cabeceira da cama e ficamos de mãos dadas, sem necessidade de conversar. Ela alterna períodos de longo silêncio com outros dedicados a narrativas da sua vida. 

Alguns minutos se passaram até que virou a cabeça na minha direção e começou a dizer que costumava ficar feliz quando a sua mãe lhe penteava o cabelo e prendia o rabo-de-cavalo com uma fita azul. Era uma fita de seda azulzinha como o céu. Assim, de cabelo arrumado, ela ia para a escola. Essa escola ficava bem no meio da plantação de café. Grande e bonita, cheia de crianças, e tinha muitas gaiolas de passarinho dependuradas nas paredes. Na hora do lanche ela repartia o pão e a goiabada com os coleguinhas mais pobres que não levavam nada pra comer. A mãe se admirava com o seu apetite quando chegava e ia almoçar. É que ela às vezes dava o lanche inteiro para as outras crianças e por isso ficava com fome. Mas não contava nada porque tinha medo de levar bronca.

Dito isso, caiu em silêncio. Fiquei quieta segurando a sua mão, pensando na história de vida daquela mulher. História conhecida por todos nós, seus descendentes. 

Ela foi a única menina de uma família de imigrantes italianos. Nasceu logo depois do desembarque. Sua mãe morreu no parto. Cresceu entre irmãos bem mais velhos, e aos treze anos foi dada em casamento a um homem que nunca tinha visto, com o dobro da sua idade. Meses depois deu à luz uma criança que viveu poucas horas. A partir daí, a cada ano e meio em média, tinha um novo bebê. Do total de onze, sete sobreviveram. Após o décimo primeiro nascimento o meu bisavô teve a decência de morrer. Deus sabe como ela fez para criar sozinha aqueles filhos. A pobreza e o analfabetismo os acompanharam pelo resto da vida, mas todos chegaram à idade adulta sem nunca se desviar do bom caminho.

Um fato marcante ainda lhe aconteceria: a alfabetização através do neto mais velho, que vem a ser o meu pai. Uma mudança profunda em sua qualidade de vida: passou a ler tudo o que lhe caía nas mãos e tinha preferência por romances românticos, aqueles cheios de adjetivos e com finais felizes. Só parou de ler quando foi vencida pela senilidade.

Estava eu nesses pensamentos quando entrou a cuidadora. Sorriu com expressão de cumplicidade e teve a delicadeza de fingir não ter visto as lágrimas tremulando nos meus olhos.

--- Quietinha, né? Tem estado bem quietinha hoje.

--- Acabou de me contar a história da escola no meio do cafezal.

--- Eu gosto dessa história. Mas agora ela inventou uma nova, muito bonita. Acho que é a mais bonita de todas. Você também vai gostar.

--- Sobre o quê?

--- Sobre como foi lindo e romântico o dia em que o namorado de infância, seu bisavô, a levou para passear numa campina toda florida. Assim que o sol começou a se por, o céu ficou mais bonito e a brisa mais fresca. Foi então que ele se ajoelhou e pediu a mão dela em casamento.

Olhei para a face tranquila da minha bisa. Estava fitando o nada, totalmente em paz. Talvez sonhando com aquela tarde encantada na companhia daquele namorado afetuoso. 

A vida não é justa. Ela merecia ter sido feliz. Apertei mais a sua mão e, finalmente, as lágrimas relutantes escorreram dos meus olhos.


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