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segunda-feira, 15 de março de 2021

Esterilidade

O coração humano é mesmo cheio de mistérios. Estou alegre e triste ao mesmo tempo. 

Alegre por ter cumprido a minha missão; triste porque o desfecho foi diferente do que eu esperava e desejava. 

Agora estou voltando à minha terra. 

Até ontem eu trabalhava para a famosa fotógrafa Darina Svoboda. Nem tão famosa assim, concordo, mas próspera o suficiente para contratar uma assistente particular. O fato de termos a mesma nacionalidade e portanto falarmos a mesma língua ajudou na minha contratação. Também foi estratégico ter feito uma pesquisa sobre a sua carreira e personalidade. O acaso, por sua vez, colaborou fazendo eu estar no lugar certo na hora certa.

Foram nove meses de convivência. Uma gestação completa. Para mim isso carrega uma simbologia especial.

Nove meses tentando ser a assistente perfeita, aquela que desempenha com perfeição e rapidez todas as tarefas, que faz um café exatamente ao gosto da chefe, que sabe ouvir com discrição os eventuais desabafos, e suporta com humildade os não tão raros surtos de mau humor. Uma criatura eficiente, submissa e sem personalidade. Um objeto útil, indispensável.

Não foi fácil. Deus sabe quantas noites adormeci chorando de nervoso e cansaço. Mas era preciso. E valeu a pena.

Ontem finalmente tivemos a conversa que eu tanto esperava. Começou de forma natural, como tinha de ser.

Cumprindo o ritual diário de elogios, apontei para uma de suas fotos. Achei que se parecia com um lugar da minha cidade natal, Praga. Que, não por coincidência, é a dela também. Em preto e branco, um fim de tarde ou um amanhecer chuvoso. Calçadas reluzentes de umidade. Névoa. Um homem se afastando, segurando um guarda-chuva. 

"Magnífica esta imagem!" disse eu. 

"Uma das minhas preferidas!" respondeu ela.

E, sem necessidade de outros estímulos, iniciou uma sessão de recordações.  

"Essa é a última foto que fiz antes de deixar a República Tcheca. Foi tirada da janela do apartamento onde eu morava com meu noivo Marek, o homem do guarda-chuva."

Nessa hora senti o coração disparar. Ela não percebeu nada e nem perceberia, egocêntrica que é, incapaz de enxergar outros seres humanos. Continuou:

"Era uma manhã bem fria. Acordei sacudindo ele, pedindo que fosse buscar alguns trdelníks, meu doce preferido, já que estava com desejo."

Começou a rir. 

"Ele era tão bobo! Fazia tudo o que eu pedia, acreditava em tudo o que eu dizia. Estava guardando dinheiro para comprar o nosso apartamento. Você sabe como as coisas são difíceis na Tchéquia. Sempre foram. Mas ele tinha esse sonho de comprar um apartamento para nós, e ia juntando as economias num cofrezinho de madeira guardado debaixo da cama."

Aqui, outra risada de deboche. 

"Eu tinha dito a ele que estava grávida, por isso ele se levantou imediatamente, se vestiu e saiu prometendo voltar o mais rápido possível com os meus doces. O bobalhão nem percebeu que ainda faltavam duas horas para o comércio abrir."

Outra risada. Eu cada vez mais nervosa, mas sempre em silêncio para não cortar o fio do relato. 

"Quando ele saiu fui à janela e achei interessante o cenário. Peguei minha Kodak e bati a foto. Tive muito tempo pra juntar as coisas e partir rumo ao aeroporto. O que eu queria da vida era bem diferente daquilo que ele podia me dar. Fui em busca do meu futuro. Dele, só queria mesmo o cofrezinho de madeira pra pagar a passagem e as primeiras semanas neste país."

Nessa altura eu estava em choque. Tive que interrompê-la:

"E a criança que a senhora estava esperando?"

Ela me olhou surpresa, não sei se pela interrupção ou pelo teor da pergunta. Mas não se abalou.

"Criança? Que criança? Era mentira. Nunca fiquei grávida. Sou estéril. Não falei que ele acreditava em tudo?"

Antes de ouvir a próxima risada de escárnio simplesmente me virei e fui embora, sem uma palavra de despedida. Nem sei se ela disse alguma coisa, se me chamou de volta. Mortos não falam, e para mim ela estava morta. 

Pobre tio Marek. Passou a vida toda preocupado com um filho que nunca existiu. Não contou a ninguém, nem a mim, que havia sido roubado pelo seu grande amor. Jamais se ligou a outra mulher. Quando descobriu onde Darina estava, passou a guardar dinheiro para viajar ao seu encontro, mas a doença não permitiu.

Já no leito de morte me pediu o favor de localizar o seu filho e lhe explicar que a ausência não havia sido proposital. 

Meu último ato desta missão será visitar o seu túmulo assim que desembarcar. Vou me sentar na grama perto da lápide e lhe contar tudo o que descobri. Sei que não estará ali para me ouvir, mas quem sabe ouvirá de onde estiver. 

Ou, melhor ainda, talvez não me ouça e seja poupado de saber que amou uma criatura despida de sentimentos.

De qualquer maneira, a missão estará cumprida. 

Espero que descanse em paz, tio Marek. Que finalmente se liberte da imagem congelada em preto e branco na qual a mulher de coração estéril o aprisionou. Que a manhã lhe nasça ensolarada, colorida, e que toda a doçura daqueles trdelníks flua para dentro da sua alma e lá permaneça para sempre.



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