Minha filha Vanessa, quando pequena, adorava ouvir histórias antes de
dormir. Foi por causa dela que me tornei escritora.
Ao contrário das outras crianças, ela não gostava de histórias
repetidas.
Às vezes, por falta de ideias, eu tentava reciclar velhos contos de
fadas mudando um pouco os personagens e o enredo, mas ela sempre reconhecia e
reclamava:
―
Não, mamãe, esse não. Esse você já contou. É daquela menina que furou o
dedo e caiu dormindo, não é?
Depois de ler para ela todos os livrinhos, depois de contar todas as histórias de que me lembrava, comecei a inventar. Mas logo compreendi
que devia ter cuidado porque ela percebia as pontas soltas.
―
Mamãe, onde foi parar o cavalinho? Aí no final você só falou do porco,
da cabrita e da galinha. O cavalinho sumiu por quê?
Por isso comecei a ter mais cuidado com os meus roteiros, a ponto de
tomar notas das ideias e sempre compor um diagrama de blocos com muitas flechinhas
subindo e descendo. Para jamais esquecer um personagem ou quebrar uma sequência.
Assim surgiu o primeiro dos vários livros que publiquei.
Vai daí, uma semana atrás eu estava com um problema. Participando de
um desafio literário, precisava escrever um conto de fadas. O prazo prestes a se esgotar e ainda faltava o final da história. Esse final não me ocorria,
por mais que pensasse e repensasse.
Tive a ideia de ler o texto para a minha filha ―
agora adolescente ― e pedir-lhe sugestão.
Expliquei que era para o público infantojuvenil, portanto ela deveria
relevar o vocabulário simplório, as repetições e também certas imprecisões e
incongruências.
―
Tá legal, mãe. Manda vê.
Então “mandei vê”.
“Sem título ainda”
Era uma vez um gigante que habitava um rico castelo no topo de uma montanha.
Certo dia ele acordou sentindo-se doente e pensou que estava velho e cansado
demais para continuar cuidando de tudo sozinho. Resolveu procurar ajuda.
Desceu até a aldeia no sopé da montanha, mas não conseguiu falar com
ninguém porque todos fugiam de medo, entravam em suas casas e trancavam as
portas.
O gigante já estava pensando em desistir da ideia quando, ao passar
por uma bica, encontrou uma moça enchendo de água os seus potes .
Sem mais demora ele agarrou a moça e a carregou para o castelo.
Chegando lá, explicou tudo o que era preciso fazer e avisou para que não
fugisse, porque ele iria atrás e tudo seria muito pior para ela.
A moça fingiu obediência, mas sabia que o seu noivo não ia se conformar
com a situação e mais cedo ou mais tarde apareceria a fim de resgatá-la.
Todas as noites, depois de passar o dia trabalhando sem parar, ela subia para
o seu quarto na torre do castelo e ficava olhando o horizonte, tentando ver se
o noivo estava chegando.
Em vez do noivo ela sempre encontrava uma pombinha branca pousada no
parapeito da janela. Não tendo ninguém para conversar, conversava com a
pombinha. A cada frase dita, a pombinha arrulhava como se estivesse
respondendo.
―
Será que ela me entende? pensou a moça.
Então teve uma ideia. Escreveu um bilhete e disse à
amiguinha:
―
Por favor, pegue este papel com o seu bico e leve para o meu noivo. Ele é
ferreiro, então você tem que se guiar pelo som que ele faz ao martelar as
ferraduras. É assim: tóim! tóim! tóim! Não tem como errar.
A pombinha pegou o papel e foi embora voando em direção à aldeia. Na
manhã seguinte voltou com outro papel no biquinho. Estava escrito: “Minha
noiva, precisamos nos livrar do gigante. Todos os seres mágicos têm a vida
guardada em algum lugar. Procure descobrir onde está a vida do gigante, que eu
irei lá e a destruirei. Assim poderei libertá-la e viveremos felizes e
despreocupados.”
Na primeira oportunidade a moça fez a pergunta. Ele
estranhou.
―
Pra que você quer saber onde fica a minha vida? Está planejando me matar?
Ela, fazendo cara de inocente, respondeu:
―
Pelo contrário, mestre. Quero cuidar muito bem do lugar onde fica a sua vida
para que o senhor viva muito e com saúde.
O gigante contou que a sua vida ficava no meio da raiz do grande
carvalho ao lado do castelo.
Ela foi lá e limpou o terreno em volta da árvore, plantando flores perfumadas
e coloridas.
O gigante ficou olhando e não disse nada.
À noite ela escreveu outro bilhetinho ao noivo. A pombinha levou e
pela manhã trouxe a resposta: “Minha noiva, o gigante está te testando. A vida
dele não deve ficar na raiz do carvalho. Espere alguns dias e repita a
pergunta.”
Foi o que ela fez.
―
Mestre, eu limpei e enfeitei o carvalho, mas a sua saúde não está melhor do que
antes. O que eu posso fazer para ajudar?
O gigante respondeu:
―
A minha vida não está na raiz do carvalho. Ela tem forma de pérola e está
dentro de uma ostra no fundo do mar.
A moça dessa vez colheu muitas rosas, foi para a beira do regato que
passava atrás do castelo e ficou despetalando as rosas, jogando as pétalas na
água. Antes de jogar ela dava um beijo em cada uma.
O gigante perguntou:
―
Por que está fazendo isso?
Ela respondeu:
―
O regato corre para o rio e o rio corre para o mar. Cada pétala leva uma
mensagem de boa sorte. Assim o mestre terá uma vida longa e com saúde.
Quando a noite chegou a moça mandou outro bilhete ao noivo. A resposta
trazida pela pombinha dizia: “Ele ainda está te testando. Espere alguns
dias e pergunte de novo.”
Depois de alguns dias ela disse ao gigante:
―
Mestre, não percebi melhora na sua saúde. Devo jogar mais rosas no regato?
Ele respondeu:
―
A minha vida não está na raiz do carvalho nem dentro de uma ostra no fundo do
mar. Está no coração de uma pombinha que mora na torre do castelo.
Vanessinha ficou me olhando.
―
E depois, mãe?
―
Parei aí. Não sei como terminar.
―
É fácil. A moça deve matar a pombinha e pronto.
―
Matar a pombinha?! Assim, friamente? Um ser inocente que a ajudava tanto?
―
E daí? O plano não era matar o gigante? O que é a morte de uma pombinha perto
da morte de um ser humano?
―
Mas o gigante não é humano. É um ser fantástico e malvado.
Minha filha demonstrou impaciência:
―
Ah mãe, quer saber mesmo o que eu acho? Acho que não era gigante nenhum. Era um
homem velho, doente e sozinho. Ele
foi à aldeia querendo contratar funcionários, mas os preguiçosos não estavam a
fim de trabalhar. Daí ele encontrou a moça, que topou a parada já com segundas intenções.
Vai ver, antes de subir a montanha ela trocou uma ideia com o tal noivo e os
dois premeditaram o crime. A troca de bilhetinhos na verdade era só para combinar
a melhor ocasião de ele entrar no castelo e assassinar o velho. Depois eles iam
enterrar o corpo debaixo do carvalho. Se alguém perguntasse iam dizer
que ele tinha morrido de causas naturais. E iam ficar com toda a fortuna pra eles, na maior tranquilidade.
Agora eu é que fiquei olhando para a minha filha, sem dizer nada.
Ela se levantou, pegou a mochila e foi saindo.
―
Tchau, mãe. Boa sorte aí na finalização. Usa a minha ideia que vai ficar legal.
Já com a mão na maçaneta, ela virou e disse:
― A senhora não percebeu o que o velho queria dizer? A vida dele estava no coração de uma
pombinha que morava na torre do castelo. Nunca vi uma declaração de amor
mais explícita do que essa.
Não terminei o conto. Perdi o prazo para o envio do texto. Continuo
sem saber como será o final. A moça mata friamente a pombinha? Ou manda
bilhetinho para o noivo? Ele aproveita e estrangula no ato o ser inocente ou
repete a ladainha de que a informação ainda não é a correta?
Vanessinha terá razão? Estará o gigante apaixonado pela moça? Ela fica
com ele e esquece o noivo moleirão que só enrola e não vai salvá-la?
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