Ela voltava da horta quando viu, em frente ao seu barraco, um jovem bonito, bem vestido, em atitude de expectativa.
--- Doutora Solange? A senhora é a doutora Solange, não é?
Medo, contrariedade, surpresa e estranhamento: tudo isso se mostrou em seu semblante. Aproximou-se, depositou no chão o cesto com algumas raízes de mandioca e uma abóbora pequena.
--- Dotora? Que dotora? Por acaso tenho cara de dotora, moço?
--- Eu sei que é a senhora. O meu pai reconheceu a senhora numa foto.
--- Que é que você tá falando, menino? Foto? Que foto? Nunca tirei foto na vida.
--- Vou lhe explicar direitinho. Fui com o meu pai a uma exposição de imagens, e quando ele viu a sua, reconheceu na mesma hora!
--- Não tô entendendo nada do que você tá falando, moço. Vorta pra estrada e continua percurando porque você errô de endereço.
Ele olhou longamente aquela mulher de meia-idade, mal vestida, a pele curtida de sol, o cabelo escondido sob um pano grosso. Não desistiu.
--- Depois que o meu pai lhe reconheceu, eu fui falar com o fotógrafo. Foi assim que descobri o seu paradeiro. Ele disse que enganou a senhora. Que a senhora não queria, mas ele deu um jeito e fez a foto escondido.
Uma pausa. Olhou para o chão. Voltou a encará-la e falou devagar:
--- Parece até que foi coisa do destino, mãe.
A última palavra mexeu com ela.
--- Mãe? Essa dotora era sua mãe?
--- Era não. É. Quando a senhora fugiu eu tinha só dois anos, por isso não me reconheceu.
A mulher se mostrou emocionada.
--- Não tenho filho, moço. Deus lhe ajude a encontrar a sua mãe. É triste filho sem mãe.
--- Olha, eu só quero que a senhora saiba que não tem mais perigo, já pode voltar. Meu pai me contou que a senhora era cientista e fez uma descoberta muito importante, mas ficou com medo que caísse em mãos erradas e apagou tudo.
--- Que é que você tá falando, menino? Num tô intendendo.
Ele ignorou a interrupção.
--- Daí o chefe do seu grupo de pesquisa quis lhe obrigar a refazer todos os passos da descoberta, porque o resultado valia muito dinheiro. A senhora fugiu para não ser obrigada a revelar os detalhes, e também para proteger a sua família.
Ela ficou olhando o jovem. Agora a expectativa era dela.
--- Mas esse cara já morreu, e ele era o único que sabia do estudo. Pode ficar tranquila, ninguém mais vai lhe perseguir. Volta comigo e fica com a gente de novo.
Ela estava quase chorando, mas se segurava.
--- Não entendi nada do que você falou, menino. Mais é muito triste um filho ficá sem a mãe. Inda mais se ela fugiu. Vô rezá pra você incontrá ela, viu?
Ele, cabisbaixo, parecia decepcionado. O pai lhe garantira que a mulher da foto era a sua mãe, sem a menor sombra de dúvida. Talvez fosse, mas nesse caso a negação revelava um grande pavor. De quê? O inimigo estava morto. Ninguém mais sabia da descoberta. Medo de quê? Não fazia sentido. Mais provável que ele estivesse ali fazendo papel de bobo.
--- Então a senhora me desculpe. Pensei mesmo que tinha encontrado a minha mãe. Pelo visto, o meu pai se enganou. Fique com Deus, então. Está precisando de alguma coisa? O que posso fazer pela senhora?
--- Não, menino. Não tô percisando de nada não. Vai em paz. Tomara que as coisa se ajeite pra você. Vô rezá pra Deus te ajudá.
Quando o jovem entrou no veículo e rumou para a estrada ela ficou acenando adeus até ele desaparecer na curva. Depois entrou no barraco e sentou no banco perto da janela. Ficou olhando para as galinhas ciscando no terreiro, o cesto esquecido no chão. Pensava na vida...
* * *
Afinal, quem era --- ou tinha sido --- essa doutora Solange?
Era médica, trabalhava em pesquisa do câncer e descobriu acidentalmente, por meio de um estudo com tardígrados, uma droga que embora falhasse na cura daquela doença produzia rejuvenescimento nos organismos. A fonte da juventude.
Assustada com as implicações de tal descoberta, resolveu mantê-la em segredo até decidir o que fazer. Não conseguiu. Tendo se negado a compartilhar os detalhes da pesquisa com o chefe do laboratório, sofreu sequestro e tortura. Nessa altura já tinha destruído tudo: anotações, arranjos experimentais e substâncias químicas. Não revelou nada. Conseguiu fugir, mas teve que deixar para trás sua família e sua vida.
***
Finalmente levantou-se do banco a mulher de meia-idade, mal vestida, a pele curtida de sol, os cabelos escondidos sob um pano grosso. Foi ao terreiro e recolheu o cesto com as raízes de mandioca e a abóbora pequena.
Antes de voltar para dentro ficou uns instantes contemplando o horizonte. Pra onde, agora? Tantos anos aperfeiçoando seu novo eu, tentando incorporar aquela personagem.
Pra onde, agora? Qualquer lugar, menos a sua antiga vida. Como poderia contar ao filho que o chefe estava morto porque ela o matara na tentativa de fuga? E como poderia revelar a ele que o seu próprio pai havia facilitado o sequestro depois de aceitar um acordo com o chefe?
Não, impossível voltar. O inimigo ainda estava à espreita.
***
"Tardígrados são animais microscópicos da família dos artrópodes. Conhecidos popularmente como ursos d'água, são muito resistentes: podem sobreviver em temperaturas variando desde duzentos graus negativos até cento e cinquenta positivos. Suportam pressões de seis mil atmosferas e radiações mil vezes maiores do que um ser humano pode aguentar. Algumas espécies brilham no escuro."