Moleque ainda, eu trabalhava na venda do meu tio. Ano de mil, novecentos e
quarenta, se tanto.
À
tarde ficava sozinho por longo tempo, já que o tio saía para almoçar e se demorava
bastante nos seus comeres e beberes.
Certa
ocasião, só eu na venda, entrou um freguês e já foi apontando para a manta
de carne dependurada ao lado do balcão:
―
O que é isso?
―
É carne seca.
Ele
ajeitou os óculos e chegou mais perto, demonstrando interesse.
―
Deixe ver como está.
E
passou o dedo sobre a manta.
―
Isto aqui não é carne seca.
―
Como não? É carne seca sim senhor.
―
Mas está molhada.
―
Molhada? Pode estar úmida por causa desse tempo abafado. Mas é carne
seca.
―
Se está úmida, não é carne seca.
Senti
falta do tio. Aquele freguês ia ter coragem de azucrinar a paciência de gente
grande do mesmo jeito que azucrinava a paciência de uma criança?
―
Olha, senhor, ela está úmida agora, mas é carne seca legítima. Todo mundo
compra e ninguém nunca reclamou.
―
Mas estou te dizendo, menino. Ou é uma coisa, ou é outra. Se é seca, é seca.
Se é molhada, é molhada. Isto aqui é carne molhada.
Fiquei
sem resposta. Só consegui dizer:
― Faz assim: o senhor compra e depois enxuga ela.
― Pois então não fique dizendo para as pessoas que é seca. Se o freguês precisa
enxugar, então é molhada.
Meu
tio que não aparecia. Resolvi concordar.
―
É verdade, o senhor tem toda a razão.
Ele
se mostrou satisfeito:
―
Ainda bem que reconhece. Me vê aí um filão de pão.
―
E quanto o senhor vai levar de carne seca? Quer dizer, molhada?
―
Quem falou que eu quero comprar carne, menino? Só vim mesmo pra comprar um
filão de pão!
Depois
de receber o troco foi embora resmungando.
―
Cada uma! Querendo me empurrar carne molhada. Eu, hein?