Acabo de
chegar do enterro da minha cunhada. Inventei uma dor de cabeça e pedi para o
meu marido ir comprar um remédio. É tarde, as farmácias estão fechadas, ele vai
demorar. Quero ficar um tempo aqui sozinha, escrevendo este relato. Sinto que
preciso fazer isso e tem que ser agora, caso contrário não vou conseguir me
despedir dela por completo. Este papel eu colocarei dentro de um envelope que nunca mais
será aberto. Necessário agora é escrever, colocar pra fora, despejar em algum
lugar estas lembranças e estas confissões .
Eu já estava
casada há dez anos, e tudo caminhava bem. Sem filhos, porque nunca quisemos tal
responsabilidade. Gostávamos da nossa vida do jeito que era, com independência
e privacidade.
Foi então
que a bomba estourou. Meu marido apareceu com uma novidade: sua irmã mais velha
tinha que vir morar conosco. Mas como? Por quê?
Ele explicou
detalhadamente. Estava coberto de razão, eu é que não queria entender. Hoje
sei que era o certo a fazer. Ela havia ficado solteira a vida toda, cuidado
dos pais até a morte de ambos, era idosa, não tinha a menor condição de continuar
sozinha na antiga moradia, precisava estar com alguém para um caso de
necessidade.
Fiquei
revoltada. Vamos perder toda a privacidade, disse eu. Nunca mais sairemos,
nunca mais viajaremos em paz: ou levar junto ou deixar alguém tomando conta, as
duas únicas opções. Vai ser uma preocupação constante, pior do que teríamos com
um filho, porque mais cedo ou mais tarde ela vai precisar de alguém para
cuidar, levar ao médico, dar banho. Mais despesas também. Adeus à vida organizada, despreocupada e
tranquila. Uma pessoa estranha sempre presente, exigindo atenção. O que nós
fizemos para merecer isso?
Só parei de
falar quando percebi que ele estava ficando chateado e triste. Era a sua única
irmã e, devido à grande diferença de idade, quase a sua segunda mãe. Ela sempre soubera
que tinha a missão de cuidar dos pais até o fim, mesmo que casasse. Não casou,
dedicou-se integralmente a eles. Agora, após o falecimento da mãe,
restava ali um bagaço de ser humano, alguém que não havia realizado nenhum
sonho porque sempre pensara no bem estar dos outros e jamais no seu. Merecia
ficar abandonada naquela casa deserta, onde já há muito tempo se sentia
cansada de tantas obrigações e afazeres? Ou colocada em uma instituição para
idosos, sem contato com os únicos laços familiares que lhe restavam?
Não, claro
que não. Ao contrário, merecia um pouco de descanso e conforto. Concordei.
Contrariada, mas procurando não demonstrar; querendo preservar o que possuía de
mais valioso na vida: o meu casamento.
Então ela
veio. Tímida, envergonhada. Hoje entendo que se sentia triste pela
perspectiva de viver de favor. Como pagar por esse favor? Sendo submissa,
quieta. Sorrindo quando achava que era pra sorrir, nunca pedindo nada, nunca
manifestando irritação ou descontentamento.
Saíamos para
trabalhar e ela ficava só. Lia, fazia tricô, regava as plantas do apartamento,
ouvia rádio. Não gostava de televisão. Fez algumas tentativas de ajudar no
trabalho doméstico, mas a desencorajamos. Não era necessário e podia ser
perigoso devido à idade. Quando a diarista vinha para a faxina ela aproveitava e dava brilho nos espelhos, tirava algum
pozinho. Às vezes fazia um passeio a pé.
Comprava frutas, um doce, um refrigerante, que trazia para casa a fim de compartilhar conosco. Não tinha aposentadoria nem pensão, só o rendimento
da poupança resultante da venda da casa.
Sou uma
pessoa má. Não sabia disso antigamente, mas depois da convivência com minha
cunhada não há como ignorar o fato de que sou uma pessoa essencialmente má.
Essa maldade provém do meu egocentrismo. Hoje eu sei, e tento me controlar. Olá.
Meu nome é Alexandra. Sou uma pessoa má, e estou há quatro anos e cinco meses
sem praticar nenhuma maldade.
Prova desse desvio de caráter é que eu me irritava com a presença dela no café da manhã e no
jantar. Antes da sua vinda aqueles eram momentos gostosos que eu tinha com o
meu marido. Conversávamos, trocávamos as impressões do dia de trabalho,
fazíamos planos para o fim de semana, ríamos juntos. Mas com ela ali na nossa
frente ficava difícil, porque era necessário incluí-la na conversa e não
sabíamos como. Tornava-se uma coisa forçada, sem graça, artificial. Confesso que me
senti aliviada quando, depois de algumas semanas, ela perguntou se podia fazer
as refeições antes de nós. Estava acostumada a se levantar e deitar
muito cedo, então achava melhor voltar aos antigos horários. A partir de então, ao levantarmos, o café da manhã já estava
pronto na mesa. E quando chegávamos à noite ela já havia comido o seu jantar e
adiantado os preparos para o nosso. Tive de reconhecer que tal arranjo era bastante
satisfatório.
Vai daí, só
restou um outro motivo de irritação. Era a música que ela ouvia todas as
noites quando se recolhia ao quarto para dormir. Por volta das oito e meia,
religiosamente, lá vinha aquela música tocada na vitrolinha velha.
O volume era baixo, mas dava pra reconhecer a Valsa das Flores de Tchaicovsky.
Cheguei a cronometrar: durava sete minutos e seis segundos. Todas as noites,
invariavelmente. Graças aos céus ela não recolocava o long play,
tocava a valsa apenas uma vez. Mas por que sempre a mesma música, no mesmo
horário? Eu podia ter perguntado, mas não o fiz por receio de invadir a sua
privacidade, de parecer rabugenta, de inibir essa rara fonte de prazer que ela
ainda possuía.
Certa noite
fazia frio, eu e o meu marido estávamos enrodilhados no sofá da sala, abraçadinhos, vendo
a novela. Começou a música. Baixinha, não chegava a incomodar. Mas a irritação
me fez levantar e fazer uma coisa muito feia. Disse ao meu marido que estava
indo ao banheiro, mas fui olhar pelo buraco da fechadura do quarto dela. O que
vi me deixou de respiração suspensa.
Ela estava
vestida de noiva. Um traje antiquado, desgastado pelo tempo, horroroso. Mais
parecia uma mortalha. Ela dançava lentamente ao som da Valsa das Flores, pra lá
e pra cá, os braços estendidos como se houvesse alguém dançando com ela. O véu
oscilava, a cauda do vestido se arrastava pelo chão. Era tétrico, era horrível.
Saí de lá
lentamente, com um nó na garganta. Fui para o banheiro tentando me recompor.
Quando voltei à sala o meu marido notou que eu estava diferente. Acho que estou
gripando, respondi. Mais tarde, já na cama, perguntei a ele por que sua irmã
nunca havia se casado. Tinha sido de propósito, para cuidar dos pais, ou apenas
aconteceu?
Ele me
contou uma história trágica. Ela não havia planejado ficar solteira. Era uma
moça ativa, alegre, tinha um emprego, namorou e ficou noiva de um homem que trabalhava
em uma oficina mecânica do bairro. Parecia
estar tudo bem, ele sabia que iam morar na casa dos pais dela mas se mostrava contente
porque vivia em uma pensão, tinha vindo do norte e era sozinho, por isso achava
que ter família outra vez seria uma grande felicidade. Pelo menos assim dizia.
Estava tudo
pronto para o casamento. O quarto dos noivos, o vestido, o horário na igreja e
o salão de festas, tudo preparado. O civil era no sábado e o religioso no
domingo. Naquela tarde ela vestiu um tailleur branco, discreto e elegante,
colocou um colarzinho de pérolas, um ramo de flores no cabelo, e foi com toda a
família para o cartório. Esperaram bastante, mas o noivo não chegava.
Telefonaram para a pensão e ficaram sabendo que ele tinha viajado na noite
anterior. Viajado? Sim, respondeu a dona da pensão. Colocou tudo em uma mala,
pagou a conta do mês e disse que estava voltando para o norte.
O mundo caiu
para ela. O que poderia explicar aquilo? A melhor hipótese foi de que o
rapaz já era casado lá no norte, e alguém avisou a sua mulher. Parece que um
dia antes ele havia recebido uma carta, e depois disso tudo mudou.
A noiva
entrou em depressão. Deixou o emprego, perdeu a alegria e a motivação para
viver. Foi se recuperando devagar, mas a partir de então era outra. Permaneceu
em casa, nunca mais quis sair para estudar ou trabalhar. Tornou-se essa que
estava lá agora.
Depois de
ouvir tudo fiquei pensativa. Como eu conseguira, até aquele momento, me manter tão indiferente à vida da minha cunhada? Por que aconteceu de nunca ter me
interessado, nunca ter perguntado nada ao meu marido?
A resposta
era simples: egocentrismo. Não me importava o que acontecia no resto do mundo.
Eu, o meu marido, o nosso lar, nossos empregos e nossas diversões: nada fora do meu microuniverso me dizia respeito. Assim foi até o momento em que o
universo lá de fora meteu o seu focinho frio e pegajoso nessa bela perfeição.
Já na manhã
seguinte olhei com renovado olhar para a minha cunhada. Ela não
era ridícula, nem quando ficava sentada conosco sem dizer nada, nem quando
colocava aquele vestido de noiva maltrapilho e dançava secretamente a valsa
dos noivos. O fantasma da sua valsa dos
noivos. Todas as noites, sempre no horário em que deveria ter ocorrido, muitos
anos atrás.
Ela não era
ridícula, apenas tinha o coração partido.
Após desse dia mudei a minha atitude, não porque planejasse, mas porque os meus
sentimentos haviam mudado. Finalmente acolhi de boa vontade a nova pessoa da nossa
família, e acredito que ela foi feliz nos anos que lhe restaram.
Quando
adoeceu, pedi licença do trabalho e fiquei com ela. Cuidei, levei ao médico, dei banho. Quando faleceu, fui eu quem a
preparou para o enterro.
Foi
sepultada toda de branco, de véu na cabeça e buquê nas mãos. Fiz questão de lhe colocar um vestido de rendas quase
igual àquele traje que vi pelo buraco da fechadura. Nunca contei ao meu marido
sobre a valsa dos noivos. Nunca contei a ninguém. Guardarei esse segredo.
Para ouvir as músicas citadas clique nos respectivos títulos: Valsa das Flores / A Bela Adormecida
6 comentários:
Professora belos escritos. Triste história da moça. E esse ensinamento nos mostra como devemos ser mais paciente com os outros. Nesse caso, nossos educandos. Parabéns, amei , expressivo e linda história de ouvir e ler.
Obrigada, Fernando! Vejo que você é um professor nato, porque sempre pensa nos educandos. Parabéns! Essa história tem a ver com a empatia entre os seres humanos, sobre como ela pode nos fazer evoluir como pessoas. Beijo e volte sempre! :)
Professora, existe uma expressão em inglês, que se traduzida, fica assim: "Todo mundo está enfrentando uma batalha, da qual você não sabe nada sobre. Seja gentil, sempre." Se encaixa perfeitamente nesta história! :)
Muito bem lembrado, "Undesirable". Seria bom que tivéssemos isso sempre em mente. Em vez de julgar precipitadamente as pessoas, classificando-as como chatas, ridículas, idiotas e outras coisas, deveríamos parar pra pensar sobre o que está acontecendo em suas vidas. Muitas vezes são fatos bem graves, dos quais não fazemos ideia. Tem a ver com aquele velho preceito: amar ao próximo como a si mesmo. :)
Estou lendo seus contos, to gostando até aqui, foi o segundo que li, e agora que vi que tem como comentar, continue escrevendo porque tem sempre alguém que lê e gosta.
Obrigada, Diego! Espero que continue visitando o blog. Você pode ver, por meio das informações na coluna à direita, que existem contos de todos os tipos, para escolher de acordo com o gosto do momento. Vou continuar escrevendo sim; tenho muitas ideias para transformar em histórias. E é tão bom saber que alguém leu e gostou! Abração!
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