Assim que entramos na sala o seu olhar foi atraído, como sempre, pela parede coberta de quadros. Aproximou-se de uma paisagem em duas cores, demonstrando grande interesse. Ficou lá parado, totalmente absorvido pela imagem.
--- Bonito, né? disse eu só para quebrar o silêncio.
Tive a impressão de que não me ouviu, mas algum tempo depois respondeu:
--- Esse quadro é novo. Não tava aqui antes.
Sou incapaz de imaginar como o meu filho consegue perceber essas coisas. A parede abarrotada de pinturas, uma bagunça de cores que parece uma salada de frutas, ou um arco-íris esfacelado, sei lá. Mesmo que frequentasse aquele ambiente todos os dias, eu jamais iria perceber alguma mudança.
--- É a vida, mãe.
---- Me explica, filho. Só estou vendo duas figuras num barquinho.
--- Canoa, mãe.
--- Que seja. Mas por que é a vida?
--- O remador precisa remar com atenção, sem perder tempo, porque se perder tempo vai ficar de noite, vai ficar tudo escuro.
--- Como você sabe?
--- A sombra. A sombra aumenta e vai chegando perto. Ele quer alcançar o outro lado antes da sombra escurecer o lago.
--- Ah, é um lago? Pensei que era um rio.
Na verdade eu não estava pensando nada, só queria incentivar a conversa. Ele, muito sério, sem tirar os olhos da imagem:
--- É um lago. Ele precisa chegar do outro lado antes de escurecer.
--- E a figura que está com ele, sentada atrás?
--- É a sabedoria, mãe.
--- Então não é uma pessoa? É uma espécie de anjo? Tipo o anjo da sabedoria?
--- Anjo não. É a sabedoria que nasceu com ele. Aonde ele vai, a sabedoria vai junto.
--- Nesse caso ele é alguém especial, já que recebeu esse dom.
--- Todo mundo nasce com sabedoria.
--- Mas nem todo mundo é sábio. Pouca gente demonstra sabedoria.
--- É porque não é obrigado, mãe. Se não quiser usar não usa.
--- Entendi. Mas voltando pro quadro, me diga uma coisa. Se a escuridão chegar até ele antes de alcançar a margem do lago, o que acontece?
--- A vida acaba. A sabedoria tá falando o que ele tem que fazer. Se fizer, a vida acaba só na outra margem. Se não fizer, a escuridão alcança ele e ele morre no meio da travessia.
--- Então é melhor ouvir os conselhos da sabedoria.
Nesse momento ele se virou e, para minha surpresa, me olhou nos olhos.
--- Por quê, mãe?
Fui salva pela recepcionista:
--- Vocês já podem entrar, a doutora está esperando.
Eu sei que ele não vai esquecer a pergunta. Uma hora vou ter que responder por que a jornada mais longa é melhor que a mais curta.
Não sei a resposta agora.
Espero que me surja alguma inspiração durante a nossa consulta de rotina, com a psiquiatra preferida do meu filho.
Imagem: Johannes Plenio
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