Eu me sentia
tão bem naquele lugar. Lá eu era quem realmente sou. Nada mais, nada menos. Apenas
eu.
Enquanto vivia aqui, sempre fui o que queriam que eu fosse; sempre fiz o que queriam que eu
fizesse.
Todos
ficavam satisfeitos, me aprovavam e sorriam. Todos viviam contentes, menos eu.
Lá não. Lá
eu era diferente. Não pensava em ninguém. Nem sequer me lembrava dos outros.
Estava muito ocupado comigo mesmo. Sendo feliz pela primeira vez.
Me sentia
aliviado, essa é verdade.
Agora que
voltei, voltei diferente. Consigo ver com clareza: sempre carreguei um peso nas costas. Era
difícil, mas eu me esforçava. Até que não consegui mais.
Por isso fui
para lá.
A vida
inteira desejei duas coisas: um jardim e uma horta.
Conversa de maluco, diziam
meus pais. Você tem que estudar, não pode perder tempo chafurdando na terra.
Essas coisas a gente compra na feira e na quitanda. Vai estudar, menino, larga
de inventar histórias.
Estudei, me
formei. Agora vou ter um jardim e uma horta, pensava. Jardim? Horta? Minha
noiva estranhava. Um dia quem sabe, depois da aposentadoria. Agora temos outras
prioridades.
Montamos
casa, criamos nossa filha, me aposentei.
Jardim, pai?
Horta? Pra quê? Com essa idade, fazer serviço pesado com pá e enxada? Tomar friagem?
Melhor não. Olha a saúde.
Pois fiquem
sabendo que lá, naquele lugar, eu tinha tudo isso. E ninguém para me criticar.
Plantei um
jardim na frente da casa e uma horta nos fundos. Sim, porque eu tinha uma casa.
Estão pensando o quê? Que eu vivia ao relento? Não senhor.
Era uma
casinha pequena, simples, e eu nunca me senti tão confortável.
Plantei margaridas,
rosas, gerânios e dálias.
E todas
floriram em pouco tempo! Um colorido maravilhoso. As borboletas, abelhas e
pássaros aprovaram o meu jardim. Coisa linda de se ver como o ar se enchia de
asas e sons.
Ainda não
contei sobre o meu amigo, o Francisco de Paula. Ele morava ― mora
ainda ―
na casa mais perto da minha. Não há muitas habitações por lá, mas o suficiente
para a gente não se sentir só. Às tardes nos sentávamos na varanda e
ficávamos observando as borboletas, abelhas e beija-flores. Bichinhos
abençoados.
Francisco
gostava do meu café. Ninguém da minha família gostava. Muito fraco, diziam.
Pois o Francisco achava melhor assim, fraco e com bastante açúcar.
Me ajudou a
plantar a horta. Eu não sabia bem o que era melhor plantar, então ele me trouxe
sementes e mudas. Ervilha, cenoura, tomate,
espinafre e alface. E também ervas: manjericão, alecrim e orégano. Horta
pequena, mas muito viçosa. A última coisa que plantei foi berinjela, e já
estava quase ficando boa de colher quando voltei pra cá.
Não me conformo.
Abandonei tudo aquilo pra quê?
Um dia
acordei e não sei por que motivo comecei a pensar na família. Minha mulher, minha
filha, genro e netos. Durante todo o tempo que fiquei lá nunca pensei neles,
mas naquele dia me levantei preocupado.
Francisco me
disse: se você acha que deve voltar, volte. Siga o seu coração.
No final das
contas acabei seguindo o meu sentimento de culpa. Estava feliz longe deles. Não
me preocupava a respeito de como se sentiam com a minha ausência. Sofriam? Eram
indiferentes? Estariam satisfeitos? Pouco me interessava. Que pessoa egoísta eu
era. Tinha que me penitenciar. Tinha que voltar e fingir que me importava.
Agora estou
novamente entre eles, e mais infeliz do que nunca.
Todos em
redor da minha cama.
A esposa, de
olhar cansado, mal contendo a vontade de se lamentar. Não está propriamente
feliz com o meu retorno. Seu pensamento é: quando ficarei livre de todo esse
incômodo?
A filha
preocupada, mas não muito. Sinto-a mais focada em sua própria vida, nos
problemas com o marido e os filhos. Entendo. É natural que seja assim.
O genro
irritado com a perda de tempo. Tantas tarefas urgentes e ele ali fazendo de conta.
Netos
impacientes. Gostamos do vô, mas gostamos mais de fazer as nossas coisas.
Será que voltei com o poder de ler pensamentos? Ou voltei senil, paranoico?
Noite
passada conversei em sonho com o Francisco de Paula.
Ele disse: você
pode vir pra cá quando quiser, meu amigo, mas dessa vez vai ser definitivo. Não é permitido ficar viajando de um lugar para o outro assim, toda hora.
Preciso decidir. O que me faz mais feliz: minha família ou minha horta?
Tenho
pensado muito naquelas berinjelas...
2 comentários:
Que lindo texto. Triste e difícil. Se a gente se descuida acaba construindo uma vida inteira apenas com o que esperam da gente.
Obrigada, Hellô! Isso é bem comum, não?
Agradeço pela visita e pela gentil avaliação. ❤
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