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domingo, 11 de dezembro de 2016

A bela e a megera

Eu me considero um cara educado. Uso com frequência as palavrinhas mágicas “por favor”, “obrigado”, "me desculpe" e “dá licença”. Me visto com asseio e discrição. Nunca jogo o lixo fora do lixo. Nos transportes públicos evito me sentar nos bancos reservados. A não ser quando estou exausto ou quero aproveitar para ler mais algumas páginas do livro, porque sempre carrego um livro. Mas fico ligado: em todas as paradas suspendo a leitura para ver se não chegou um passageiro precisando mais daquele assento do que eu.
Dias atrás, voltando do trabalho, entrei num vagão de metrô onde os únicos lugares vagos eram os reservados. Como não havia ninguém em pé, achei que não fazia mal descansar um pouco. Tirei da mochila o “Barba ensopada de sangue” do Daniel Galera. Estava ansioso pra saber se o protagonista ia achar o avô maluco que virou ermitão e vivia numa caverna, lá nas montanhas de Garopaba. Corajoso, o protagonista. Eu mesmo ia querer distância dessa figura. Gente louca me apavora.
Duas estações depois, ao levantar os olhos da página, vi na minha frente uma senhora idosa. Parecia saudável, mas já tinha passado dos sessenta há muito tempo. Nem guardei o livro, levantei imediatamente e disse:
― Faz favor, senhora. Senta aqui.
A mulher me olhou como se tivesse ouvido um palavrão. E falou de um jeito bruto, com uma voz aguda que doía no ouvido:
― Tá me dando o lugar por quê? Tá me achando velha demais pra ficar em pé?
Fiquei sem saber como responder. A hesitação durou só um segundo; apelei para a minha criatividade de escritor iniciante:
― Não, de jeito nenhum. É porque a senhora é mulher. Faz parte da educação dar o assento para as mulheres.
A velhinha não desfez a careta de raiva.
― Quer dizer que o senhor acha que nós mulheres somos fracas e temos que ficar sentadas?
Dessa vez nem a minha criatividade de escritor me serviu. Olhei em volta procurando ajuda e reparei numa moça loira, alta, muito bonita, com a mão na boca segurando o riso.
A velhinha doida continuou, com sua voz insuportavelmente aguda:
― Vocês homens são muito engraçados. Acham que a gente é fraca demais pra ficar em pé, mas não é fraca demais pra parir os filhos cabeçudos que vocês fazem na gente. Nem é fraca demais pra esfregar cueca com freada de caminhão.
Disse isso e ficou me encarando com aquela expressão horripilante, aguardando uma resposta só pra ter a chance de continuar com a humilhação. Olhei para a loira. Agora ela ria abertamente, sem disfarçar. Cheguei à conclusão de que não havia o que fazer. Pedi licença e desci na parada seguinte, bem antes da minha estação. Até porque não gostei da maneira com que ela balançava o guarda-chuva (nada feminino) que carregava.
No dia seguinte rezei para não topar com a velhinha doida de novo. Era improvável e não aconteceu. Porém, quarenta e oito horas depois do incidente, com quem me deparei? Com a loira alta, bonita e risonha, aquela que em vez de me ajudar se divertiu com a situação. Assim que me viu aproximou-se e me abordou sem nenhum constrangimento:
― Oi! Foi você que a minha tia importunou anteontem, não foi?
Disse isso sorrindo, como se ainda estivesse achando graça.
― Ela é sua tia?
― Irmã da minha mãe. Mora na minha casa. É completamente maluca.
E começou a rir.
― Ela tem Alzheimer? (Fiz a pergunta estranhando que alguém pudesse dar risada de uma pessoa doente.)
― Não! Sempre foi maluca. Ninguém aguenta ela. Implica com tudo, é impressionante.
― Deve ser algum problema mental.
― Não, é gênio ruim mesmo. Teve uma época que o meu pai colocou ela num asilo, e sabe o que aconteceu?
― Não faço ideia.
Começou a rir de novo e teve que forçar uma pausa para responder:
― Devolveram ela! Nem eles aguentaram!
Na próxima estação muita gente desceu, e nos sentamos lado a lado. Ela disse que havia gostado do meu cavalheirismo e do fato de eu não ter respondido mal às provocações. Achou engraçada a cara que eu fazia enquanto tentava apaziguar a velhinha. E tinha notado o livro na minha mão (ela também gostava de ler). E queria me encontrar de novo no dia seguinte.
Fiquei admirado com a desenvoltura da moça. Par perfeito para um cara tímido como eu, pensei sem querer (querendo). Combinamos nos encontrar na estação onde ela sempre embarcava, ao lado das cadeiras da plataforma.  
Fizemos isso durante uma semana. Entrávamos juntos no trem e íamos conversando durante o percurso. Ela descia três estações antes de mim, mesmo assim tínhamos vinte e cinco minutos de conversa. Na maior parte do tempo falávamos sobre livros, planos para o futuro e os nossos empregos. E também sobre a tia maluca. Ela achava tudo hilário, mas aquelas histórias bizarras me metiam medo. Nem queria imaginar a sensação de conviver com uma pessoa tão desequilibrada. Uma única vez bastou para me deixar traumatizado.
Isso durou até ontem. Ela, que sempre se despedia com um beijo rápido no rosto, dessa vez me deu um selinho. E disse, sem o menor embaraço:
― Amanhã vou te pedir em namoro. Vai pensando, tá?
Uma piscadinha, um beliscãozinho no meu braço, e lá se foi ela, toda maravilhosa a bordo do seu scarpin vermelho de salto alto.
E agora? Uma moça linda e loira, alegre e inteligente, está interessada em mim. Mas como lidar com a tia maluca que mora com ela? Que me apavora até a medula dos ossos?
Preciso dar a resposta daqui a duas horas.
Universo, seu sacana!  Tinha que me trollar desse jeito?!  :(

           Imagem: http://www.paraisofeminino.com.br

6 comentários:

Anônimo disse...

Acho que esse cara não gosta de mulher e está usando a tia louca como desculpa pra não namorar a bonitona. Tô certo ou tô errado?

Zulmira Carvalheiro disse...

Prezado Anônimo, acho que a sua hipótese é possível, mas não podemos afirmar nada com certeza. Afinal não sabemos qual resposta ele vai dar, não é? ;)

Vitor Costa disse...

Simpática e bem escrita sua história! Cuidadosamente construída, sem pressa, mas sempre andando!

Dá-se um jeito de lidar com a tia, a mulher, se ele realmente ama, é muito mais importante, acho que o universo foi bom com ele, pois sem a tia e sua loucura, não haveria a loira bonita rsrs

Beijos, gostei muito daqui!

O Mundo Em Cenas

César Gatto disse...

Adorei o conto! Tanto que deixei uma aba do navegador reservada para ele para eu ler de vez em quando.
Gostei muito da história do jeito como vc escreve!
O texto é continuo e flui bem, sem enrolação e em cada frase, tem um detalhe importante, que encaixa certinho na frase.
Notei um errinho: a loira diz que amanhã vai pedir ele em namoro e depois o rapaz diz que tem que dar a resposta em duas horas, não era amanhã? rs
Gostei demais da história nesse lance de universo e eu acho que eu no lugar do protagonista ficaria muito feliz se tivesse acontecido comigo. A tia maluca é o de menos, ele conseguiu uma namorada!

Zulmira Carvalheiro disse...

César, se você adorou o conto eu adorei o seu comentário! :D Obrigadão mesmo! Sobre o errinho, repare que foi no dia anterior que ela deu a dica de pedi-lo em namoro: "Isso durou até ontem. Ela, que sempre se despedia com um beijo rápido no rosto, dessa vez me deu um selinho. E disse, sem o menor embaraço: ― Amanhã vou te pedir em namoro. Vai pensando, tá?" Ou seja, ele está contando isso no dia seguinte, duas horas antes do horário previsto para se encontrarem. E ainda não sabe como vai responder. Chego a suspeitar de que está correta a hipótese levantada pelo "Anônimo" (do primeiro comentário): que ele na verdade não gosta de mulher e está enganando a si próprio com a desculpa da tia louca. Será que um homem hétero prestaria atenção no "scarpin vermelho de salto alto" que ela usa? Fica a dúvida no ar... ;)

César Gatto disse...

Ah tá, agora entendi! Não tinha me ligado no "Isso durou até ontem." Viajei rsrs
Tbm acho que essa hipótese está correta, acho que um hetero jamais prestaria atenção nesse tal de scarpin hahah