Quando adoeceu o pároco da única igreja daquela cidadezinha,
o médico escreveu uma carta à irmã do enfermo pedindo-lhe que viesse ajudar.
Dona Amora era viúva, costureira, e tinha uma filha de
quinze anos chamada Edelvais. Ao receber o pedido, refletiu e chegou à
conclusão de que tanto fazia costurar aqui como acolá. Perderia algumas
freguesas mas logo conquistaria outras, que para isso era competente. Além do
mais, morando com o irmão ficaria livre do aluguel. Resolveu mudar-se definitivamente.
Edelvais gostou da ideia porque ali onde vivia não tinha
amigas e muito menos namorado. Quem sabe o que a aguardava na nova casa? Seu jovem coração encheu-se de esperanças.
No dia da chegada o médico enviou seu empregado à estação de
trem para recebê-las e conduzi-las à casa paroquial. O rapaz voltou cheio de
histórias pra contar. Dona Amora não parecia uma costureirinha simplória não.
Era uma mulher muito elegante. Usava um grande chapéu azul de cetim com copa
alta e abas arredondadas, arrematado por um laço de renda. Sua filha usava chapéu
também, que era igual ao da mãe mas um pouco menor e cor-de-rosa.
Os dias se passaram sem novidades, a não ser pelos
comentários das poucas pessoas que visitavam o pároco. Diziam que sua irmã e sobrinha os recebiam sempre de chapéu, o que era de se estranhar já que
dentro de casa não havia razão para tanta formalidade. Os chapéus de Amora eram azuis ou verdes, em várias tonalidades; os de Edelvais tinham cores mais
alegres como rosa, alaranjado e amarelo.
Certa altura alguém perguntou o motivo de a menina não ir à
escola como todas as outras de sua idade. O assunto passou a ser discutido na
casa paroquial. Seria uma grande novidade para a jovem, que havia aprendido com
sua mãe a ler, escrever e fazer contas. Junto com a alfabetização e a
aritmética vieram também os ensinamentos de tricô, crochê e costura. De que
mais precisava uma mulher para viver com dignidade?
Na opinião do pároco seria conveniente matricular Edelvais,
afinal elas desejavam integrar-se à vida da cidadezinha. Amora pretendia retomar seu ofício de costureira, e nada melhor do que fazer amizade com algumas senhoras. A escola
seria a porta de entrada para uma vida social.
Deveras emocionante para Edelvais o primeiro dia de aula.
Vestiu-se com capricho e colocou seu chapéu predileto. Caderninho em branco, lápis
bem apontado, lá foi ela em companhia do tio, que embora caminhasse devagar já
estava quase recuperado.
Foi apresentada à professora, que chamou de lado o pároco e
lhe perguntou se estava ciente de que a classe era mista. Cidade pequena, muita
dificuldade em arranjar professores, resultou que a escola tinha apenas uma sala dedicada aos estudantes daquela idade. Então a classe misturava meninas com meninos.
Se ele não tivesse objeção, ficaria tudo certo, caso contrário...
Não querendo criar caso, o pároco respondeu que confiava no
recato da sobrinha e não via problema no convívio com jovens do outro sexo.
Tudo acertado, Edelvais foi conduzida à sala de aula.
Muita curiosidade e falatório dos alunos ao verem a aluna
nova com seu grande chapéu amarelo-ouro. Sentando-se no lugar indicado, logo
começou a receber queixas dos colegas de trás, que não conseguiam enxergar a
lousa. Será que não podia tirar o chapelão quando estivesse na classe?
Edelvais não precisou ouvir duas vezes e foi logo descobrindo
a cabeça. Um brado de assombro se fez ouvir por toda a sala.
O que era aquilo? Uma cabeça ou um jardim? Mal se viam os
cachos escuros da menina tamanha a profusão de folhas, flores e gavinhas
brotando por todo o lado.
O que mais causava espanto era que, evidentemente, as
plantas não haviam sido colocadas entre os cabelos, mas sim brotado ali
mesmo em sua cabeça.
Os estudantes mais próximos se afastaram, num estranhamento
que se mesclava ao medo e à repugnância. Outros, pelo contrário, quiseram ver
de perto.
Atenuado o susto, ficaram sabendo que as plantas haviam mesmo crescido ali, as sementes tendo germinado entre os
fios. Edelvais não lavava a cabeça nunca, porém não sofria com coceiras ou mau
cheiro. Aparentemente as pequenas raízes sugavam qualquer sujidade e toda a
umidade excessiva. Bastava molhar uma vez por dia e ficar no sol umas duas
horas. Para dormir, um travesseiro estreito, duro e alto onde apoiava a nuca sem
pressionar o jardinzinho.
Resultava que as plantinhas delicadas, com suas folhas pequeninas e florinhas em
diversas cores, enfeitavam o rosto bonito de Edelvais como a uma fada da
primavera. Lindo de se ver, mas estranho, aproximando-se do bizarro.
Nesse mesmo dia a menina foi para casa com uma carta solicitando
o comparecimento da mãe.
Dona Amora não esperou pela manhã seguinte: foi à escola
assim que leu o papel. A diretora, enquanto expunha a perplexidade geral em
relação à nova aluna, não conseguia tirar os olhos do grande chapéu verde-água
que oscilava com suavidade à sua frente. Percebendo a insistência do olhar,
dona Amora tirou o chapéu. Devagar, com cuidado, foi revelando a vegetação
que carregava entre os cabelos: uma pequena horta de morangos silvestres com
vários frutinhos amadurecendo.
O médico teve de ser consultado. Após examinar as cabeças
das mulheres concluiu que a situação, embora inusitada, não oferecia perigo
para a saúde. Em ambas, a higiene capilar apresentava-se um tanto comprometida, mas o
couro cabeludo mantinha-se preservado e os bulbos capilares continuavam
saudáveis.
Embora contrariada, a diretora teve de permitir a presença da
menina, com cabeça florida e tudo, na sala de aula.
A murmuração logo ganhou as ruas, praças e armazéns, que
embora fosse pequena a cidade tinha lá suas ruas, praças e armazéns; e principalmente
uma profusão de línguas .
Dona Amora não via mais motivos para ocultar sua hortinha de
morangos, então aboliu o uso do chapéu tal qual a filha já tinha feito. Começou
a receber muitas visitas, a pretexto das encomendas de costura.
O pároco já recuperado, o trabalho de Amora frutificava e a
menina Edelvais florescia.
Meses depois, feliz por ter conquistado algumas amizades, um
primeiro amor surgiu para a garota. Era um mocinho de sua classe, daqueles que no
primeiro dia de aula haviam chegado bem perto para examinar o jardinzinho. Chamava-se
Ascânio.
Dizia ele que os cabelos de Edelvais de longe tinham cheiro
de flor, e de perto cheiro de terra molhada. As pessoas se perguntavam a
que cabelos ele se referia, já que estavam quase totalmente cobertos pela
folhagem miúda salpicada de florinhas minúsculas. E de gavinhas que se
enrolavam e desenrolavam de acordo com a hora do dia. Chegava a ser sinistro.
Fosse como fosse, os jovens estavam enamorados. Naquele
tempo tudo acontecia com mais vagar, por isso o primeiro beijo tardou a acontecer. Já havia decorrido algumas semanas de namoro quando, encontrando-se ambos em lugar discreto, Ascânio fez menção de beijá-la.
Edelvais sorriu antecipando o paraíso e indicou com um gesto que ele tivesse cuidado com as suas flores. Aproximaram-se mais e ele, delicadamente, segurou-lhe rosto com as duas mãos. O beijo começou suavemente, as folhinhas sequer vibraram. Após alguns segundos nenhum dos dois se lembrava de folhas, de flores, nem de nada ao redor. O beijo aprofundou-se, as mãos de Ascânio afundaram-se
entre as ramas dos cabelos de Edelvais, e poderia ter sido o beijo mais
longo deste mundo não houvesse alguma coisa misteriosa serpenteado sorrateiramente para dentro
do ouvido do rapaz.
Ele afastou-se instantaneamente, arregalou os olhos, deu um
grito terrível e caiu desmaiado.
Acudiram rapidamente. O médico localizou uma minhoca
muito esguia dentro do canal auricular de Ascânio. Retirou-a cuidadosamente com uma
pinça enquanto o menino permanecia desacordado. Recuperando-se logo depois, ele olhou para o jardim parcialmente destruído na cabeça da namorada e pôs-se a chorar de nervoso.
Edelvais, atarantada com o pensamento de que abrigara um
verme nojento em sua cabeça, o qual estivera próximo de matar seu gentil conversado, decidiu que tudo precisava mudar.
Já
em casa arrancou as plantinhas, lavou a cabeça repetidas vezes com
sabonete perfumado e pediu à mãe que cortasse os seus cabelos bem curtinhos. Diante da desoladora destruição daquela obra de arte vegetal, Amora, em solidariedade à filha, imitou-lhe o gesto e despojou-se da sua plantação de morangos.
O pároco alegrou-se com a mudança. Nunca se sentira à vontade tendo à vista aqueles adereços que
remetiam vagamente a antigos e desarrazoados costumes pagãos.
No dia seguinte Edelvais apareceu na escola sem nenhum
elemento botânico na cabeça. Lá vicejavam agora apenas as raízes de seus
cabelos escuros.
Ascânio, ainda abalado, olhou com surpresa e não escondeu certa decepção. Achou que ela não estava tão bonita quanto antes. Em vez de
reconhecer e valorizar o sacrifício da menina, perdeu totalmente o interesse
por ela.
(E jamais, jamais em sua vida contou a alguém que aquele grito desesperado não tinha sido de dor ou de pânico, mas sim de um agudo, indescritível, excruciante surto de prazer...)
(E jamais, jamais em sua vida contou a alguém que aquele grito desesperado não tinha sido de dor ou de pânico, mas sim de um agudo, indescritível, excruciante surto de prazer...)
2 comentários:
Gostei bastante do texto, sua escrita é ótima.
Beijos e sucesso.
Claquete Rosa
Obrigada, Nathalia! Visitei o seu blog (http://www.claqueterosa.com.br/) e achei muito legal. Parabéns! :) Sobre o texto acima, confesso que foi uma tentativa deliberada de imitar o estilo de Machado de Assis. Ridículo, eu sei. :P É o próprio "inquieto vaga-lume" invejando a estrela, igualzinho ao que acontece no início do soneto "Círculo Vicioso". Mas sempre é um exercício, e exercitar é bom. ;) Beijos, volte sempre!
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