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quarta-feira, 8 de julho de 2015

Valsa dos Noivos

Acabo de chegar do enterro da minha cunhada. Inventei uma dor de cabeça e pedi para o meu marido ir comprar um remédio. É tarde, as farmácias estão fechadas, ele vai demorar. Quero ficar um tempo aqui sozinha, escrevendo este relato. Sinto que preciso fazer isso e tem que ser agora, caso contrário não vou conseguir me despedir dela por completo. Este papel eu colocarei dentro de um envelope que nunca mais será aberto. Necessário agora é escrever, colocar pra fora, despejar em algum lugar estas lembranças e estas confissões .

Eu já estava casada há dez anos, e tudo caminhava bem. Sem filhos, porque nunca quisemos tal responsabilidade. Gostávamos da nossa vida do jeito que era, com independência e privacidade.

Foi então que a bomba estourou. Meu marido apareceu com uma novidade: sua irmã mais velha tinha que vir morar conosco. Mas como? Por quê?

Ele explicou detalhadamente. Estava coberto de razão, eu é que não queria entender. Hoje sei que era o certo a fazer. Ela havia ficado solteira a vida toda, cuidado dos pais até a morte de ambos, era idosa, não tinha a menor condição de continuar sozinha na antiga moradia, precisava estar com alguém para um caso de necessidade.

Fiquei revoltada. Vamos perder toda a privacidade, disse eu. Nunca mais sairemos, nunca mais viajaremos em paz: ou levar junto ou deixar alguém tomando conta, as duas únicas opções. Vai ser uma preocupação constante, pior do que teríamos com um filho, porque mais cedo ou mais tarde ela vai precisar de alguém para cuidar, levar ao médico, dar banho. Mais despesas também. Adeus à vida organizada, despreocupada e tranquila. Uma pessoa estranha sempre presente, exigindo atenção. O que nós fizemos para merecer isso?

Só parei de falar quando percebi que ele estava ficando chateado e triste. Era a sua única irmã e, devido à grande diferença de idade, quase a sua segunda mãe. Ela sempre soubera que tinha a missão de cuidar dos pais até o fim, mesmo que casasse. Não casou, dedicou-se integralmente a eles. Agora, após o falecimento da mãe, restava ali um bagaço de ser humano, alguém que não havia realizado nenhum sonho porque sempre pensara no bem estar dos outros e jamais no seu. Merecia ficar abandonada naquela casa deserta, onde já há muito tempo se sentia cansada de tantas obrigações e afazeres? Ou colocada em uma instituição para idosos, sem contato com os únicos laços familiares que lhe restavam?

Não, claro que não. Ao contrário, merecia um pouco de descanso e conforto. Concordei. Contrariada, mas procurando não demonstrar; querendo preservar o que possuía de mais valioso na vida: o meu casamento.

Então ela veio. Tímida, envergonhada. Hoje entendo que se sentia triste pela perspectiva de viver de favor. Como pagar por esse favor? Sendo submissa, quieta. Sorrindo quando achava que era pra sorrir, nunca pedindo nada, nunca manifestando irritação ou descontentamento.

Saíamos para trabalhar e ela ficava só. Lia, fazia tricô, regava as plantas do apartamento, ouvia rádio. Não gostava de televisão. Fez algumas tentativas de ajudar no trabalho doméstico, mas a desencorajamos. Não era necessário e podia ser perigoso devido à idade. Quando a diarista vinha para a faxina ela aproveitava e dava brilho nos espelhos, tirava algum pozinho.  Às vezes fazia um passeio a pé. Comprava frutas, um doce, um refrigerante, que trazia para casa a fim de compartilhar conosco. Não tinha aposentadoria nem pensão, só o rendimento da poupança resultante da venda da casa.

Sou uma pessoa má. Não sabia disso antigamente, mas depois da convivência com minha cunhada não há como ignorar o fato de que sou uma pessoa essencialmente má. Essa maldade provém do meu egocentrismo. Hoje eu sei, e tento me controlar. Olá. Meu nome é Alexandra. Sou uma pessoa má, e estou há quatro anos e cinco meses sem praticar nenhuma maldade.

Prova desse desvio de caráter é que eu me irritava com a presença dela no café da manhã e no jantar. Antes da sua vinda aqueles eram momentos gostosos que eu tinha com o meu marido. Conversávamos, trocávamos as impressões do dia de trabalho, fazíamos planos para o fim de semana, ríamos juntos. Mas com ela ali na nossa frente ficava difícil, porque era necessário incluí-la na conversa e não sabíamos como. Tornava-se uma coisa forçada, sem graça, artificial. Confesso que me senti aliviada quando, depois de algumas semanas, ela perguntou se podia fazer as refeições antes de nós. Estava acostumada a se levantar e deitar muito cedo, então achava melhor voltar aos antigos horários. A partir de então, ao levantarmos, o café da manhã já estava pronto na mesa. E quando chegávamos à noite ela já havia comido o seu jantar e adiantado os preparos para o nosso. Tive de reconhecer que tal arranjo era bastante satisfatório.

Vai daí, só restou um outro motivo de irritação. Era a música que ela ouvia todas as noites quando se recolhia ao quarto para dormir. Por volta das oito e meia, religiosamente, lá vinha aquela música tocada na vitrolinha velha. O volume era baixo, mas dava pra reconhecer a Valsa das Flores de Tchaicovsky. Cheguei a cronometrar: durava sete minutos e seis segundos. Todas as noites, invariavelmente. Graças aos céus ela não recolocava o long play, tocava a valsa apenas uma vez. Mas por que sempre a mesma música, no mesmo horário? Eu podia ter perguntado, mas não o fiz por receio de invadir a sua privacidade, de parecer rabugenta, de inibir essa rara fonte de prazer que ela ainda possuía.

Certa noite fazia frio, eu e o meu marido estávamos enrodilhados no sofá da sala, abraçadinhos, vendo a novela. Começou a música. Baixinha, não chegava a incomodar. Mas a irritação me fez levantar e fazer uma coisa muito feia. Disse ao meu marido que estava indo ao banheiro, mas fui olhar pelo buraco da fechadura do quarto dela. O que vi me deixou de respiração suspensa.

Ela estava vestida de noiva. Um traje antiquado, desgastado pelo tempo, horroroso. Mais parecia uma mortalha. Ela dançava lentamente ao som da Valsa das Flores, pra lá e pra cá, os braços estendidos como se houvesse alguém dançando com ela. O véu oscilava, a cauda do vestido se arrastava pelo chão. Era tétrico, era horrível.

Saí de lá lentamente, com um nó na garganta. Fui para o banheiro tentando me recompor. Quando voltei à sala o meu marido notou que eu estava diferente. Acho que estou gripando, respondi. Mais tarde, já na cama, perguntei a ele por que sua irmã nunca havia se casado. Tinha sido de propósito, para cuidar dos pais, ou apenas aconteceu?

Ele me contou uma história trágica. Ela não havia planejado ficar solteira. Era uma moça ativa, alegre, tinha um emprego, namorou e ficou noiva de um homem que trabalhava em uma oficina mecânica do bairro.  Parecia estar tudo bem, ele sabia que iam morar na casa dos pais dela mas se mostrava contente porque vivia em uma pensão, tinha vindo do norte e era sozinho, por isso achava que ter família outra vez seria uma grande felicidade. Pelo menos assim dizia.
Estava tudo pronto para o casamento. O quarto dos noivos, o vestido, o horário na igreja e o salão de festas, tudo preparado. O civil era no sábado e o religioso no domingo. Naquela tarde ela vestiu um tailleur branco, discreto e elegante, colocou um colarzinho de pérolas, um ramo de flores no cabelo, e foi com toda a família para o cartório. Esperaram bastante, mas o noivo não chegava. Telefonaram para a pensão e ficaram sabendo que ele tinha viajado na noite anterior. Viajado? Sim, respondeu a dona da pensão. Colocou tudo em uma mala, pagou a conta do mês e disse que estava voltando para o norte.
O mundo caiu para ela. O que poderia explicar aquilo? A melhor hipótese foi de que o rapaz já era casado lá no norte, e alguém avisou a sua mulher. Parece que um dia antes ele havia recebido uma carta, e depois disso tudo mudou.
A noiva entrou em depressão. Deixou o emprego, perdeu a alegria e a motivação para viver. Foi se recuperando devagar, mas a partir de então era outra. Permaneceu em casa, nunca mais quis sair para estudar ou trabalhar. Tornou-se essa que estava lá agora.

Depois de ouvir tudo fiquei pensativa. Como eu conseguira, até aquele momento, me manter tão indiferente à vida da minha cunhada? Por que aconteceu de nunca ter me interessado, nunca ter perguntado nada ao meu marido?
A resposta era simples: egocentrismo. Não me importava o que acontecia no resto do mundo. Eu, o meu marido, o nosso lar, nossos empregos e nossas diversões: nada fora do meu microuniverso me dizia respeito. Assim foi até o momento em que o universo lá de fora meteu o seu focinho frio e pegajoso nessa bela perfeição.

Já na manhã seguinte olhei com renovado olhar para a minha cunhada. Ela não era ridícula, nem quando ficava sentada conosco sem dizer nada, nem quando colocava aquele vestido de noiva maltrapilho e dançava secretamente a valsa dos noivos. O fantasma da sua valsa dos noivos. Todas as noites, sempre no horário em que deveria ter ocorrido, muitos anos atrás.
Ela não era ridícula, apenas tinha o coração partido.

Após desse dia mudei a minha atitude, não porque planejasse, mas porque os meus sentimentos haviam mudado. Finalmente acolhi de boa vontade a nova pessoa da nossa família, e acredito que ela foi feliz nos anos que lhe restaram.

Quando adoeceu, pedi licença do trabalho e fiquei com ela. Cuidei, levei ao médico, dei banho. Quando faleceu, fui eu quem a preparou para o enterro.
Foi sepultada toda de branco, de véu na cabeça e buquê nas mãos. Fiz questão de lhe colocar um vestido de rendas quase igual àquele traje que vi pelo buraco da fechadura. Nunca contei ao meu marido sobre a valsa dos noivos. Nunca contei a ninguém. Guardarei esse segredo.

Adeus, minha cunhada. Que descanse em paz. Se há alguma vida após a vida, que o seu coração fique curado daquela dor. Que seja feliz e tenha com quem dançar.  Não a Valsa das Flores, mas sim esta outra música de Tchaicovsky, que é alegre e combina muito mais com você: A Bela Adormecida.

Imagem: http://www.gilantiguedades.com.ar

Para ouvir as músicas citadas clique nos respectivos títulos: Valsa das Flores / A Bela Adormecida

6 comentários:

Discentes Federal São Paulo disse...

Professora belos escritos. Triste história da moça. E esse ensinamento nos mostra como devemos ser mais paciente com os outros. Nesse caso, nossos educandos. Parabéns, amei , expressivo e linda história de ouvir e ler.

Zulmira Carvalheiro disse...

Obrigada, Fernando! Vejo que você é um professor nato, porque sempre pensa nos educandos. Parabéns! Essa história tem a ver com a empatia entre os seres humanos, sobre como ela pode nos fazer evoluir como pessoas. Beijo e volte sempre! :)

Undesirable Number 9 disse...

Professora, existe uma expressão em inglês, que se traduzida, fica assim: "Todo mundo está enfrentando uma batalha, da qual você não sabe nada sobre. Seja gentil, sempre." Se encaixa perfeitamente nesta história! :)

Zulmira Carvalheiro disse...

Muito bem lembrado, "Undesirable". Seria bom que tivéssemos isso sempre em mente. Em vez de julgar precipitadamente as pessoas, classificando-as como chatas, ridículas, idiotas e outras coisas, deveríamos parar pra pensar sobre o que está acontecendo em suas vidas. Muitas vezes são fatos bem graves, dos quais não fazemos ideia. Tem a ver com aquele velho preceito: amar ao próximo como a si mesmo. :)

Unknown disse...

Estou lendo seus contos, to gostando até aqui, foi o segundo que li, e agora que vi que tem como comentar, continue escrevendo porque tem sempre alguém que lê e gosta.

Zulmira Carvalheiro disse...

Obrigada, Diego! Espero que continue visitando o blog. Você pode ver, por meio das informações na coluna à direita, que existem contos de todos os tipos, para escolher de acordo com o gosto do momento. Vou continuar escrevendo sim; tenho muitas ideias para transformar em histórias. E é tão bom saber que alguém leu e gostou! Abração!